quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Razão, sensibilidade, etc

Ontem assisti a um filme incrível. Uma mesa, duas pessoas conversando, plano contraplano. Isto é Meu Jantar Com André, de Louis Malle. O André do título é André Gregory, ator e diretor de teatro que conta a seu amigo Wallace Shawn episódios da crise existencial que atravessou nos últimos cinco anos. Na verdade, André e Wally existem de verdade, em carne e osso, e somente reencenam na tela conversas que tiveram por causa de sua amizade. Ou seja, o filme passa perto de um docudrama, ou uma dessas simulações do Linha Direta, com a diferença que os atores escrevem os diálogos e interpretam a si mesmos. Engenhoso? Simples, na verdade. A graça do filme provém única e exclusivamente do prazer de ver duas pessoas inteligentes expondo idéias e pontos de vista de maneira inteligente.



Wallace Shawn (esq) e André Gregory

É um dos melhores filmes de Louis Malle, diretor que venho descobrindo em duas caixas de DVD que importei da Inglaterra depois de juntar um dinheiro. Nos últimos dias, vi também Lacombe Lucien, Os Amantes, Trinta Anos Esta Noite e Zazie no Metrô. Somente este último me soa como uma nota falsa, mas não consegui pegar ainda o que raios define Malle como autor. Também já tinha visto Ascensor Para o Cadafalso e Atlantic City, filmes que adoro, e no conjunto, sempre tenho a sensação de ele atira para todos os lados – comédia, suspense – com diferentes tipos de tratamento, mas sempre acerta no alvo. Basta? Claro.

(Vi Meu Jantar com André numa cópia em Divx, sem legendas. Quando acabei de ver o filme, procurei o roteiro para tirar umas dúvidas no inglês, e achei esta transcrição. Li tudo de novo. Excelente diversão para um momento de tédio intelectual.)

***

No meio da longa conversa (110 minutos) de Wally e André, um dos dois menciona tangencialmente Razão e Sensibilidade, de Jane Austen. Uma vez que não posso relê-lo agora, decidi pegar a adaptação pro cinema de Ang Lee. Já havia visto o filme duas vezes, na época do Vhs, mas nunca me pareceu tão brilhante como desta vez. Claro, há de se considerar a perfeição do material de origem, mas há um senso de aplicação em cada plano, cada cena, sempre com a luz certa, com o corte preciso, que me faz pensar que pouca gente conseguiu fazer essa transição entre mídia literária e cinematográfica com tanta destreza. O filme é o livro, sem ser literário. O espírito austeniano de contenção e observação está todo lá, sem que para isso o diretor descarregue em off toneladas de excertos do original.



Kate Winslet, tão perfeita quanto possível

Outro ponto que tive prazer em observar, mais uma vez, foi Kate Winslet, claro. Ela fica com a parte final do título – sensibilidade – sem cair, graças a Deus, na histeria inadequada que a maioria das atrizes emprestaria ao papel. Se pensamos no obra de diretores em seu conjunto, vale enquadrar o trabalho de Winslet num padrão autoral. De certa maneira, ela é especialista em criar instabilidade somente com sua presença. Cada close sem eu rosto cria certa tensão nesse universo de protocolo e correção britânicos. Muito bom.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Suburbia

O tempo sempre dá razão aos bons filmes. Pecados Íntimos, de Todd Field, e Férias de Amor, de Joshua Logan, têm a mesma preocupação com a infelicidade e a apatia dos americanos médios, e o poder do sexo como propulsor de mudanças. Estão separados por mais de 50 anos. A diferença é que o filme conservador é o novo, indie, e não o produtão da Columbia.
Enquanto no filme de Logan duas pessoas se arriscam na vida, sozinhos, casados, no dia seguinte ao que se conheceram, Pecados Íntimos poda seus personagens numa lição de moral muito da improvável. Enfim, talvez as pessoas fossem mais livres nos anos 50.
Ainda assim, com todos os problemas, Pecados Íntimos é intrigante. Cena a cena, é incômodo, anormal. Pode não ser redondo no todo, mas pelo menos é capaz de despertar o espectador da indiferença. E, claro, há Kate Winslet, a melhor atriz de língua inglesa desde Meryl Streep.
Sem tempo, termino o post com a fantástica cena de sexo de Férias de Amor, com William Holden e Kim Novak.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

nip/tuck

>>> Dia desses, folheava O Prazer dos Olhos, de Truffaut, quando descobri porque ele escalou Isabelle Adjani para A História de Adele H.: “É a única atriz que já me fez chorar na frente de uma televisão”. Nunca chorei vendo tv, mas fiquei muito abalado essa madrugada, vendo um episódio de Nip/Tuck em DVD.

A amante do médico Sean McNamara, protagonista da série, sofre de câncer em fase terminal, e decide se matar. Sean, na base do “They Shoot Horses, Don't They?”, apóia a decisão, e todo o episódio mostra delicadamente todo o processo – a decisão, o ato, o enterro, e a confissão do médico para a mulher. Numa época em que a regra geral do cinema americano é a sutileza de hipopótamo, acompanhar uma série desenvolver esse tipo de idéia com tanta desenvoltura me faz pensar no cinema brasileiro mais popular, tão vilipendiado por parecer com tv. Se tivesse o nível de algumas coisas da tv americana, estaria uns vinte níveis acima do atual.

Faz pensar também em uma atriz do porte de Joely Richardson (a mulher traída), filha da grande Vanessa Redgrave. Por seu trabalho magnífico, Joely não disputou nenhum Oscar, prêmio que ultimamente tem caído de pára-quedas nas mãos de Renee Zellweger e Reese Witherspoon. Pior para o cinema.

>>> A direção desta série é tão confiante que, em toda a seqüência do suicídio, das cartas de despedida ao sufocamento no saco plástico, a trilha é Rocket Man, de Elton John. Não fica brega, e isso me lembra de três momentos cinematográficos que usaram a música de Elton John de maneira sensacional.

  • O momento de confraternização no ônibus em Quase Famosos, todos juntos cantando Tiny Dancer.

  • A poesia de Christian em Moulin Rouge, Your Song.

  • A mesma Your Song, usada por Lars von Trier em seu melhor filme, Ondas do Destino. A cada passagem de capítulo dessa história de amor de três horas, o diretor coloca um clássico romântico com algumas paisagens de fundo. Numa das últimas passagens, quando o filme alcança níveis insuportáveis de tristeza, a canção de Elton John dá o arremate.


>>> Sem tv a cabo em casa, meu contato com séries é limitado, e só agora despertei para a possibilidade de ver algumas em DVD. Nip/Tuck começa de maneira sensacional, tem elenco à prova de balas, é engraçado, triste e cínico, mas justamente depois desse episódio maravilhoso, a série cai num abismo. A crise da amizade, do casamento e da relação entre pais e filhos dá lugar a uma subtrama besta envolvendo traficante de drogas. O tom explícito em que as cirurgias são filmadas deixam de impressionar. Não vou ver a segunda temporada. Ao menos não tão cedo.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Ser feliz é ter dinheiro

Assim que for lançado em DVD, À Procura da Felicidade vai ser exibido em palestras, seminários e cursos de MBA para executivos. Trata-se do filme mais descaradamente empresarial do cinema americano desde o bom Erin Brockovich, de Steven Soderbergh. Mais uma vez, a velha lenga-lenga de pessoas teimosas que começam pobres e, depois de duas horas de projeção, estão em outro nível financeiro. É impossível não telegrafar tudo a partir do letreiro de abertura: “baseado em uma história real”.

Entre a miséria total e a felicidade – leia-se, dinheiro – Chris Gardner (Will Smith) vive em uma corrida de obstáculos. A mulher o abandona, ele fica com o filho, é despejado, despejado de novo, seu negócio não dá certo, e Gardner não pára de correr. Ele é americano e não desiste nunca.

Além de determinado, é inteligente. Sempre foi excelente em matemática na escola, e decide, sem nenhuma experiência, ser corretor no mercado financeiro. A única chance de se infiltrar neste mundo é passar por um rigoroso processo de estágio – não remunerado.

A falta de dinheiro, claro, constrói o lado “tocante”, do filme. Pai e filho dormem na rua, num banheiro de metrô, num abrigo público – e sobe “Bridge Over Trouble Water” (clássico de Simon & Garfunkel) na trilha. Num momento ultra-americano, um coro arrebatador canta um spiritual, aquelas canções evangélicas que geralmente são o primeiro passo na carreira de intérpretes de jazz com voz potente. Jesus está olhando por você. Não desista. Cada cena do filme poderia ser desdobrada em uma palavra de ordem num curso de motivação: “se você tem um sonho, proteja-o”.


Se qualquer sinopse provoca reação negativa de espectadores mais experimentados, o filme passa por cima de preconceitos como um rolo compressor. O diretor Gabriele Muccino empacota seu filme com ritmo impecável, montagem dinâmica, música animada – e o mais difícil, sem causar rejeição. Na verdade, a segurança e a determinação do filme em contar bem essa história chega a causar simpatia, mesmo que seus valores sejam muito discutíveis. O ímpeto de Gardner é quase igual ao do diretor, em seu primeiro projeto em Hollywood. Muccino parece não querer deixar escapar sua chance de fazer muito dinheiro.

Obviamente, faltou citar a carta mais alta na manga do diretor – Will Smith, pela segunda vez indicado ao Oscar de melhor ator. Sempre ajustado para o máximo de energia, Smith se vira com o pé nas costas pelos desvios cômicos e dramáticos da trajetória do personagem. Num insight perfeito, Smith trouxe o próprio filho Jaden para o papel de Chris Gardner Jr. A química sustenta o filme. Thandie Newton, a mulher que Bernardo Bertolucci amou em seu Assédio, some logo no início, desglamourizada.

No fim das contas, a grande questão do filme é saber se a extrema eficiência deste tipo de artesanato consegue fazer perdoar a celebração ininterrupta do poder aquisitivo como fonte de felicidade. Numa cena incrível, Gardner passa pela frente da empresa de corretores, e a narração, cândida: “Todos são tão felizes aqui”. Todos os personagens ricos fazem o tipo boa praça, levam os filhos para assistir futebol americano, são sempre receptivos e simpáticos. O filme é completamente acrítico em relação a este mundo – postura diametralmente oposta a do longa argentino-espanhol O Que Você Faria?, ou do não muito bom Psicopata Americano.

Se a sensação final não é de irritação, talvez seja porque, ao invés de uma mente maligna que tem o dinheiro como deus, À Procura da Felicidade passa idéia de absoluta ingenuidade, típica de certo tipo de formação cultural americana. O filme não ofende porque não parece premeditadamente mal-intencionado; apenas tem um horizonte de pensamento muito estreito. Está fazendo muito sucesso.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Babel

Texto meu, publicado originalmente no Coisa de Cinema:


Se Amores Brutos e 21 Gramas são exemplos de filmes cujo impacto diminui bastante com o tempo, Babel (EUA, 2006), terceiro longa de Alejandro Gonzalez Iñarritu, já parece bem flácido antes mesmo que acabe a projeção. Em nenhuma de suas obras anteriores, ficou tão evidente o descompasso entre a paixão com que o diretor defende suas idéias e o crédito que seu pensamento realmente merece.

A principal idéia que percorre o cinema do mexicano é o bordão “tudo está conectado”. Amores Brutos e 21 Gramas mostravam a vida de pessoas de uma mesma cidade que não se conheciam unidas por acidentes de carro. Em Babel, o nível de pretensão sobe tanto que não basta uma pequena extensão de território. O efeito borboleta tem que dominar o mundo.

Assim, a história se desdobra. dois garotos marroquinos atiram contra um ônibus de turistas somente para testar o alcance da bala. Uma turista americana é atingida, e o marido vai tentar desesperadamente salvar sua vida. A polícia marroquina corre atrás dos responsáveis pelo incidente, logo tido por autoridades internacionais como terrorismo.

A empregada da mulher baleada nos Marrocos quer ir ao México, para assistir ao casamento de seu filho. Por causa do acidente, leva os filhos do casal na viagem, e se complica na volta pra casa. Há também uma adolescente japonesa surda-muda que não parece ter muito a ver com isso tudo. O roteiro tira da cartola uma conexão na história somente para defender sua tese: tudo está conectado.



Iñarritu e o roteirista Guillermo Arriaga (do incrivelmente sutil Três Enterros, de Tommy Lee Jones) provavelmente têm razão em insistir com tanta ênfase essa teoria. Isso vende muito. É o tipo de charlatanismo que as pessoas querem ouvir, afinal, essa força superior que nos une anula o livre-arbítrio e permite a remissão de todas as culpas. Ninguém é responsável - “não sou má, só fiz uma coisa estúpida”, diz um personagem. Todo mundo é vítima, todo mundo chora, e o poder de identificação disso é imenso.

Não deixa de ser estranho que um filme com tanta mão pesada tenha os melhores trabalhos dos colaboradores do diretor. Rodrigo Prieto, fotógrafo, e Stephen Mirrione, montador, parecem melhorados pelo trabalho nos muito elegantes Brokeback Mountain e Boa Noite e Boa Sorte, respectivamente. A imagem não briga com o que está na tela, as situações humanas não precisam mais disputar espaço com os técnicos.

Pena que sejam essas situações que revelam o equívoco de Iñarritu e Arriaga. Tentando filmar esse elo invisível, eles encaram os personagens de cima, e perdem o primeiro plano. A preocupação estrutural destrói o ponto forte de seus filmes, a serviço de um ponto de vista bastante tolo.

No final do filme, vem o símbolo perfeito deste tipo de equívoco. Duas pessoas se abraçam, a câmera se afasta (via efeito digital) e mostra o céu iluminado de uma grande cidade ao som da música indecentemente piegas de Gustavo Santaolalla – fade to black. Pronto. Ainda há esperança e dá pra viver neste mundo globalizado.

Não vem ao caso discutir o teor desta “mensagem”. Qualquer comercial de televisão pode dizer a mesma coisa. O problema é que esse tipo de conteúdo associado a um tratamento exagerado soa como o pior dos best-sellers de auto-ajuda. Para quem não chorar, só resta a náusea. Babel recebeu sete indicações ao Oscar, incluindo filme, direção e roteiro.