quinta-feira, junho 21, 2007

Dois livros

Bom tempo sem escrever. Além da falta de tempo, o principal motivo é que comecei a ler dois livros exaustivos, e dedicava qualquer intervalo para adiantar a leitura. São duas histórias de adolescentes, contadas em primeira pessoa, com algum experimentalismo narrativo. Nó na Garganta, de Patrick McCabe, é infinitamente melhor do que Vernon God Little, de DBC Pierre, mas ambos são de leitura problemática.

Quanto ao primeiro tive a sensação de ler Guimarães Rosa em eslovaco. Há poesia ali com certeza, além da óbvia delicadeza de sentimentos e ações, mas a força do livro é abafada por uma tradução que não lhe permite entrega total – é o tipo de livro que se lê especulando como estava escrito em inglês. Talvez tente uma segunda vez no original, mas já antecipo as dificuldades. Pontuação corre solta, deve haver muita expressão fortemente irlandesa, etc. Enfim, segue trecho aleatório:

“Um homem feito de bolhas tomava conta da escola para meninos maus era difícil de acreditar mas era verdade lá estava ele na janela sua cabeça de bolha enorme e para fora ele vem pulando pula pula e Como vai o senhor! Ele exclama para o sargento, nunca vi uma cabeça tão brilhante, branca e polida como a cabeça que Padre Bolha tinha. Como vão todos! ele diz de novo e o sargento começa a resfolegar e tenta ajeitar seu uniforme. Muito bem padre fizeram boa viagem não foi mal padre obrigado por perguntar.”

Resumindo, Francie, garoto no interior da Irlanda nos anos 60, é perturbado pelo pai alcoólatra e pela mãe depressiva. Não por causa-efeito, ele cria um mundo sé dele, onde só é permitida a entrada do melhor amigo. Quando este começa a ignorá-lo, Francie vai ficando cada vez mais louco.

Quanto a Vernon God Little, de DBC (Dirty But Clean) Pierre, pseudônimo de Peter Warren Finlay, no todo, me lembra aquele clássico do Piores Clipes do Mundo, I'm too sexy for myself. Esse tipo de mal do ego também afeta escritores (e jornalistas), num terrível I'm too smart for myself. Não há um parágrafo nesse livro todo que não tenha sido escrito para ser espertinho e irônico, ou com a clara intenção de virar cult da cultura pop (hein?). Dá uma olhada:

“Adquiro um aprendizado: que caras mais idiotas do que eu acabam como encarregados. Veja como são as coisas. Não sou a porra de um gênio nem nada, mas esses retardados estão encarregados de cada um dos meus movimentos. O que estou começando a imaginar é que talvez apenas os imbecis estejam seguros neste mundo, os tais que andam a esmo com a manada, sem pensar em coisíssima nenhuma. Mas está me vendo? Tenho que pensar em cada porra de coisinha.”

O livro, vencedor do Booker Prize 2003, dá aquela péssima impressão causada pelos últimos diálogos de Clube da Luta, radiografia pop e rala da pós-modernidade, algo bizarro e cansativo, já que abafa qualquer possibilidade de conflito humano. Aliás, resumo: adolescente é acusado de cumplicidade num ataque de um aluno franco-atirador à escola local (Martirio, Texas), que deixou quase vinte mortos. A mídia manipula o caso, etc. Extremamente cansativo, mas acabou.

segunda-feira, junho 11, 2007

Zodíaco

Texto meu publicado no Coisa de Cinema:


Depois de Dália Negra e Hollywoodland, estréia Zodíaco, de David Fincher, mais um filme sobre crimes históricos nunca resolvidos. O cenário ainda é a Califórnia, mas Fincher troca o glamour de Los Angeles por São Francisco. As influências também mudam: ao invés do pastiche de film noir, o diretor põe toda sua imensa habilidade visual a serviço de uma merecida homenagem ao filme de ação hollywoodiano do início dos anos 70 – época de Operação França, Serpico e Os Implacáveis, de William Friedkin, Sidnley Lumet e Sam Peckinpah, respectivamente.

Não poderia ser diferente: o caso real do assassino serial “Zodíaco” (matava casais que andavam sozinhos em noites escuras, mandava cartas aos jornais desafiando a polícia) inspirou o primeiro filme do personagem Dirty Harry, Perseguidor Implacável, (de Don Siegel)de 1971. Também somos informados que o policial David Toschi (Mark Ruffalo), um dos três protagonistas, serviu de inspiração para Bullitt, personagem-título da obra-prima de Peter Yates.

David Toschi, o policial, investiga o caso do serial killer ao mesmo tempo que o jornalista Paul Avery (Robert Downey, Jr.) e o cartunista Robert Graysmith (Jake Gyllenhall), este último o autor do livro que inspirou o complexo roteiro de James Vanderbilt. Em exigentes 158 minutos, destrincha minuciosamente os desdobramentos do caso, que começa em 1969 e se arrasta pelas décadas seguintes. A depender da disposição do espectador e do respeito que ele tiver pelo tempo do cineasta, o efeito pode ser a perturbação pelo compartilhamento dessa paranóia ou o cansaço absoluto – e o abandono do filme no meio. Fincher não faz concessões, vale lembrar.

Simultaneamente à narração das investigações, Fincher ilustra o efeito da busca sem fim pelo assassino nos protagonistas. Toschi decide abandonar o caso para viver, Graysmith põe em risco o casamento, Avery se entrega ao álcool e às drogas. Cada ator defende brilhantemente seu papel, sempre atuando com contenção, sem histrionismos, fazendo precisamente as delicadas transições que indicam a perda do equilíbrio emocional de seus personagens. O nível de interpretação também é alto com os coadjuvantes – Chloe Sevigny se destaca como a esposa de Graysmith, único papel feminino relevante num filme extremamente masculino, os grandes Brian Cox e Philip Baker Hall aparecem rapidamente.

O cuidado que o filme tem com a dificuldade de se manter os nervos em ordem quando não se tem o controle da informação mostram que é este o ponto em comum de Zodíaco com Seven, e não a presença de um maníaco à solta. Fincher trabalha sempre com uma estrutura simples de suspense, tensão frente ao desconhecido, a mesma que levava à loucura os detetives de Brad Pitt e Morgan Freeman, sempre um passo atrás do serial killer dos pecados capitais, ou o irmão correto do vagabundo demente de Vidas em Jogo, também dos anos 90. Nesses três filmes, Fincher é um mestre da manipulação e esse é seu grande valor, e não o terror diante da modernidade que prejudicava seu ainda assim brilhante Clube da Luta.

Na posição de grande artesão americano contemporâneo, Fincher não decepciona. Saem as toneladas de presepada de O Quarto do Pânico e entra um cinema primorosamente contido. Aqui, pela primeira vez o domínio técnico do cineasta não briga por espaço com o lado dramatúrgico, e a habilidade manipulativa da linguagem está a serviço da fluência narrativa e não contra eles.

Neste ponto, vale notar a substituição de fotógrafos excessivos (Darius Khondji, Jeff Cronenweth) pelo sóbrio Harris Savides (com quem Fincher em trabalhou em Vidas em Jogo). Savides compõe aqui uma espetacular paleta de marrom, sem jamais tender ao fashion. Todo o departamento técnico está à altura do orçamento. Paletós de lapela larga, carros, interiores de papel de parede extravagante - está tudo lá.

Mais importante: Fincher honra o cinema setentista não somente na concepção visual, mas no tratamento seco, limpo, sem firulas, e brutalidade – elementos também resgatados pelos extraordinários Munique (Spielberg), Miami Vice (Mann) e Os Infiltrados (Scorsese). No entanto, e guardadas as proporções, Zodíaco se posiciona em relação a esses filmes contemporâneos da mesma maneira que A Conversação, de Coppola, estava frente a Bullitt e Operação França. O filme de Fincher é bruto e complexo, mas o ritmo é bem mais cerebral. O foco está mais no tormento pessoal e menos na ação, mas há tanta tensão quanto se houvesse um tiroteio a cada cinco minutos. Ótimo.

segunda-feira, junho 04, 2007

Brainstorm sobre Maria Antonieta

Boa chave para decifrar o mistério de Maria Antonieta é tentar ver o filme de Sofia Coppola por um caminho pessoal-cinematográfico. Não a ponte fácil entre a corte francesa e a realeza de Hollywood, de que a diretora faz parte. Não – o filme da Coppola parece feito em primeira pessoa porque reacessa os dois anteriores da diretora, As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros, com preocupações que parecem, mais uma vez, vindas de Antonioni, Godard e Fosse.

Do italiano, o gosto por filmar mulher, a alienação feminina, e um ritmo de cinema que é muito particular, o tempo morto, de silêncios barulhentos. Sofia continua filmando com calma, sabendo compor planos, aliando tema (mulher, pressão, costumes, incômodo) a uma rigorosa aplicação visual. De Godard, vem menos, mas o fator habitual que Coppola já tinha absorvido: a vontade de filmar a inconseqüência e a vibração da juventude.

O aparente descolamento dramático do rock com o clima de cinema abotoado parece vir daí, de Godard, e das experiências com música e som em filmes como Uma Mulher é Uma Mulher e Alphaville. Imagem prum lado, som pro outro, mas o estranhamento resultante é o que torna esse discrepância coerente. Filme estranho para gente esquisita (ou deslocada, melhor dizendo). Pois bem, é isso, mas não só isso. O rock é fundamental para criar o excesso do entretenimento, dos jogos, champagne e noitadas enquanto o mundo lá fora cai em convulsão. Isso é Fosse, isso é Cabaret.

Apontar esse tipo de coisa não é maletice cinéfila, nem checklist de influências. Isso já estava estabelecido desde aquele discurso do Oscar, quando Sofia apontou esses diretores como fundamentais para Encontros e Desencontros. Por isso chamei essa visão de pessoal-cinematográfica no início do post. Sofia deve ter sido viciada em filmes, tendo crescido com eles ao redor. Ela se formou como pessoa cinematograficamente, sendo tocada profundamente pelas obras desses diretores. Tanto suas preocupações autorais quanto seu jeito de filmar me parecem reflexo dessa história toda com o cinema.

Parece o tipo de coisa que se pode dizer de qualquer diretor, mas em poucos casos consigo ver relações desta profundidade entre artista criador e artista influenciado, ao ponto que a obra do influenciado é determinada quase que totalmente por sua memória cinematográfica. Caso semelhante, em registro bem diferente, seria Brian de Palma, e seu personalíssimo cinema de peças recicladas.