quarta-feira, novembro 28, 2007

Quatro dígitos

2046 passou no Festival de Cannes de 2004, mas só chegou aqui no início do ano passado. Ao contrário do normal no seu ritmo de trabalho, o diretor chinês fez outro filme rapidinho, My Blueberry Nights - sua estréia americana. Quando chega aqui? Enquanto não vem, dá para se perder no universo do cara em vários vídeos no Youtube.

Já ouvi essa piada: diretores que desistem de tentar fazer filmes e vão para a publicidade passam para o lado negro da Força. Talvez, mas não no caso do china aqui. A seguir (sem legendas, infelizmente), um vídeo de sete minutos que ele fez para a BMW, The Follow. No fundo, não há nada aqui que não seja Wong Kar-Wai, e os carrinhos são perfeitamente afastados para a terra do "product placement".

Incrível como não parece nem merchandising - os BMW simplesmente devem estar ali porque fazer parte do universo do cara, e pronto. Melhor do que os carros, é justamente ter esse universo. Não nada que faça esse curta feito por encomenda parecer menos autoral que os filmes do diretor consagrados em festivais. [Aliás, equipe classe A. Roteiro de Andrew Kevin Walker (Seven), fotografia de Harris Savides (Elefante), Clive Owen, Forest Whitaker, Mickey Rouke e Adriana Lima no elenco]. Romântico e melancólico:




No Youtube também há esse clipe dirigido pela cara, absolutamente extraordinário, onde ele usa o formato para ser indulgente consigo mesmo e se render a seu gosto por estilização. Detalhe: observem os números assinaturas na hora: 02h46. Basta trocar os dois primeiros dígitos, e voltamos a 2046, o quarto do filme título, que aparece também em Amor à Flor da Pele e Dias Selvagens.

sábado, novembro 24, 2007

O poder da referência

Contra todas as minhas expectativas, até gostei de Planeta Terror, o primeiro filme de Robert Rodriguez desde que cometeu Sin City, uma das piores produções desta década. O que não funcionava no longa anterior, agora trabalha a favor: a referência. Em Sin City, Rodriguez se ancorava numa caricatura de gosto duvidoso, passando longe da crueldade e da complexidade de sentimentos que permeia os melhores filmes noir. O que sobrava era a perversão sensacionalista de um diretor imaturo e uma carcaça visual, que via nos filmes noir apenas cacoetes de iluminação.

Se Rodriguez não entendia os filmes que queria copiar/homenagear, em Planeta Terror, a equação é invertida. Ele tem o domínio completo sobre um filmografia não exatamente Grindhouse, mas de filmes b, c e z dos anos 80, coisas com zumbis, assassinos em série, sexo e sangue. O filme funciona, é divertido, e tem uns achados no elenco. Melhores que as caras daquela época são as duas mulheres que empurram a trama para frente: Marley Shelton, que nunca vi antes, e a maravilhosa Rose McGowan, incorporando o ideal feminino de Tarantino - forte, sensível e em busca do domínio da própria vida. Perfeita.



Rose McGowan, em Planeta Terror

O exemplo de Rodriguez é legal para se falar de um filme muito superior - na verdade, um provável candidato à lista dos melhores dos anos 2000. Moulin Rouge, de Baz Luhrmann, é estupenda reflexão sobre o entretenimento no fim de século, completamente apaixonado, em seu hibridismo, por teatro, televisão, videoclipe, música, ópera, literatura e o próprio cinema.

Até alguns dias atrás, percebia o universo de referências que Luhrmann usou para construir seu longa febril, coisas que ficam principalmente entre Fellini a Fosse: o poder do falso e do artificial, a fusão do artista e da pessoa, e a necessidade que o show tem de continuar. Isso, sem contar com as citações efêmeras, de Hawks a Madonna, e todas perfeitas, sem aquela mania irritante de parar o filme para fazer uma piada interna - coisa dos Shrek da vida.

Mesmo assim, o mapa astral de Moulin Rouge não fica completo antes que a gente junte um obscuro molde a outro mais evidente. Não é difícil reconhecer A Dama das Camélias na trama-pretexto de amor entre o escritor e a prostituta tuberculosa. No entanto, o quebra-cabeça tem outra peça igualmente importante: Lola Montès, de Max Ophuls.



Nicole Kidman e Martine Carol

Sempre quis ver o filme, até porque a ligação com Moulin Rouge foi bastante ventilada por críticos que gosto, como Luiz Carlos Merten. À primeira vista (e com certeza vão haver outras), por mais brilhante que seja, o filme não me parece tão grande quanto outras obras do diretor, coisas como O Prazer, Liebelei, Desejos Proibidos, e principalmente, Carta de Uma Desconhecida. Claro, isso está longe de depor contra Lola Montès, visto que o nível mantido da obra de Ophuls é um dos mais altos da história.

Quanto à ligação com o Moulin Rouge, ela parece o molde definitivo em estilo e encenação. Ophuls, marcado por seu estilo acrobático, dizia que a câmera deve ir onde nem o olho humano nem o teatro conseguem chegar. A lição foi absorvida por Luhrmann, que chega aos limites da linguagem. Incorpora à sede de movimento de Ophuls o gosto pelo corte na montagem, tão facilmente confundido com uma cessão à "praga" do videoclipe. Luhrmann também abusa do excesso cênico do diretor alemão, num desbunde barroco de direção de arte e figurinos.

As semelhanças não são somente exteriores. Luhrmann também se dedica ao sentimento febril do fim de século, o universo noturno e lírico de artistas e boêmios. Aqui, Luhrmann e Ophuls se separam de Fellini, pois têm uma visão desse universo claramente romântica, no sentido literário. Também usam o filtro do melodrama, com a história de grandes mulheres na função de condutor desse mundo onírico.



Jim Broadbent e Peter Ustinov

Nesse ponto, o espelhamento de Moulin Rouge é ainda mais claro. Basta substituir o teatro-cabaré parisiense pelo circo que temos a mesma coisa - a vida e atuação sem fronteiras muito definidas, em cima do palco/picadeiro. Nos bastidores, a preocupação com a saúde da estrela, que se consumiu rapidamente numa vida excessiva. Comandando o espetáculo, os mestres de cerimônia de Peter Ustinov e Jim Broadbent, vestidos de maneira quase idêntica.

A diferença só vem no desfecho. Luhrmann vai até o fim na tragédia rasgada, na herança de Visconti e, claro, Dumas. Ophuls, brilhantemente, cria um suspense dos infernos, mas não tira a vida de Lola Montès, ao menos por enquanto. Na cena final, ele prefere a melancolia da fera domada, Lola Montès numa jaula.

Apesar dessa última diferença de tratamento, à essa altura, Lola Montès já iluminou o filme de Luhrmann, artista que, constrói um filme com peças recicladas que conhece, uma por uma. O resultado, por incrível que pareça, é extremamente pessoal (como em alguns filmes de Brian de Palma, carpinteiro com a mesma especialidade). Provavelmente porque o que une todas essas referências vai muito além do conhecimento enciclopédico. É paixão mesmo, com talento a seu serviço.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Na sala

Minhas duas salas preferidas da cidade ficam no Aeroclube: 7 e 8. Acho bacana as recordações passadistas de salas suntuosas com mil lugares, dos anos 50, mas quem não tem cão, caça com gato. Fora o circuitão dos shoppings, temos a Walter e as Salas de Arte. A Walter é bacana, e faz tempo que não vou, mas só presta para quem senta na frente. Lá vi Morte em Veneza, Rocco e Seus Irmãos, Gritos e Sussurros, A Doce Vida, Os Incompreendidos, O Passageiro: Profissão Repórter e A Noite.

Das Salas de Arte, gosto muito menos - o Museu tem tela pequena, mas aquelas pedras e o formato epidauro são sensacionais; a Aliança causa dor no pescoço, principalmente para quem senta nas cadeiras do fundo; só fui duas vezes ao MAM, o lugar é inacessível, e a sala, medíocre, claustrofóbica, estreita. As melhores são a nova Sala da UFBA, que só tem projeção digital, mas é ampla, e o Cine XIV, lugar onde a pouca profundidade do cinema trabalha a favor do filme - lá vi Dolls, Má Educação e 2046, experiências visuais inesquecíveis, não só pelos filmes, mas pela proximidade da tela. Incrível como não fica ruim, dá pra ver e ler as legendas tranqüilamente.

Nos shoppings, tudo igual, só contando a diferença de qualidade entre os não-multiplex (Barra, Lapa) e os multiplex. O Iguatemi é melhor que o Cinemark, menos high-tech e sem os bizarros erros de projeção que já vi em poucos meses da rede aqui - o Multiplex tem quase dez anos e nunca vi um microfone sobrando na imagem. Mal conheço o Itaigara (só fui duas vezes), mas achei tudo muito bom.

No entanto, essas salas me parecem todas iguais, despersonalizadas. Gosto das salas 7 e 8 do Aeroclube porque elas me parecem estranhas dentro dessa linha de montagem. Para começar, têm tela larga, já na proporção do Cinemascope. Quando eles passam um filme flat (1.85:1), metade da tela fica escura. Mas quando exibem filmes 2.35:1, fica uma beleza.

Dália Negra, filme que não gosto, ficou majestoso projetado em tela larga, ocupando todo o espaço da sala. Em geral, esse tipo de filme é exibido nas telas normais, com o escuro em cima da tela, porque o espaço da janela não encaixa. É ok ver os filmes 2.35:1 nessas telas, já que a imagem não é cortada, mas se está passando na 7 ou na 8 do Aeroclube, corro para ver.

Da 8, gosto mais ainda do que da 7. Ela parece mesmo antiga, e bizarra. Você entra não embaixo, mas no meio da platéia, e tem um grande corredor dividindo a metade de cima e a a de baixo - acho que é a única sala da cidade assim. A sala não tem muita inclinação (parece o Barra), mas isso aqui é positivo. De qualquer altura, dá pra ficar com um ponto de vista legal em relação à tela, e sem cabeças na poltrona da frente.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Depois de Horas



Post na madrugada, conseqüente sono até quase meio dia, algumas horas a menos dedicadas à monografia. Deixa estar. Scorsese fez aniversário dia desses, e taí alguém que entende da noite. A referência obrigatória é Taxi Driver, mas gosto muito também de outros filmes muito noturnos do diretor.

Depois de Horas
um incrível pesadelo que, claro, não acaba. Algo parecido, em versão diurna, fez Paul Thomas Anderson em Embriagado de Amor. New York, New York é todo sobre os bastidores das vidas complicadas do showbusiness, e tudo desemboca numa noite fria, a música do título começa discretamente, em direção ao arrebatamento total. The show must go on.

Em tempo: meus Scorsese preferidos são Touro Indomável e A Última Tentação de Cristo.

quarta-feira, novembro 14, 2007

A hora mais sombria

Uma das melhores coisas de Santiago, o documentário de João Moreira Salles, é a citação a Ozu já perto do final. A princípio, não parece uma influência perceptível para além dos enquadramentos, da câmera fixa, e do isolamento em interiores. Mas eu conheço pouco Ozu...

Santiago me deu vontade de finalmente ver uns filmes dele que tinha baixado já há algum tempo. Conhecia já o Era Uma Vez em Tóquio (por cortesia de Diego Maia) e o Bom Dia, em DVD, e gostei muito desse tom sereno, calmo, e principalmente no primeiro, do retrato de família crítico.

No último fim de semana, vi Pai e Filha, (Late Spring, Banshun) que tem a mesma qualidade dos outros dois, uma delicadeza estável, com um final lindo, o velhinho sozinho, descascando laranja. Uma beleza ver esse cinema pós-guerra, com personagens que vinham da era feudal, misturados com os jovens. Ozu registrou um momento chave: um Japão ainda cheio de tradições arcaicas, convivendo com uma modernidade agressiva, entrando pela janela.

Nada disso, de qualquer jeito, prepara para a amargura de Crepúsculo de Tóquio, triste, arrasador, ou como li num comentário do IMDB: "Ozu's darkest hour". A mesma estrutura dos outros filmes, mas aqui, Ozu parece sair da casa dos personagens e acompanha seus conflçitos na rua. Uma das filhas de um bancário se envolve com um jovem delinqüente e engravida. A mãe das garotas, sumida há muito tempo, reaparece em Tóquio.



Setsuko Hara, em Crepúsculo de Tóquio

Ozu, naquele ritmo de aparente marasmo, não faz uma concessão. Impressionante o tratamento do aborto no filme, não me lembro de nada parecido com isso antes dos anos 60. Essa ciranda de pessoas que fazem mal umas às outras vão ficando mais intensa, e o resultado só poderia ser trágico. (Quanto a isso, o filme tem uma das elipses mais impactantes que já vi).

Depois da tragédia, não há conciliação, só rancor e resignação, e sempre de maneira radicalmente humana, sem dramalhão. Está tudo no rosto da atriz-fetiche de Ozu, Setsuko Hara, que decide não aparecer na despedida da mãe, na estação de trem. É o melodrama negando o melodrama, da mesma maneira que, em Um Certo Capitão Lockhart, Anthony Mann nega o faroeste ao suprimir o acerto de contas.

O final de Crepúsculo em Tóquio não tem alívio. Ozu faz algo aqui que me lembra aquela frase de Julianne Moore em Magnólia: "Você já viu a morte na sua casa?"

Pode não ser tão redondo e equilibrado quanto o Era Uma Vez em Tóquio, mas, até por negar uma paz de espírito aos personagens, é igualmente impressionante.

sábado, novembro 10, 2007

Ler é normal

Norman Mailer morreu. Há uma fase na faculdade de comunicação (lá ele?), infelizmente não tão comum, em que alguns estudantes tentam descobrir o jornalismo literário. De Mailer, não li os que "importam". Fiquei no A Luta e em Marilyn, o primeiro bem melhor do que o segundo, porque Mailer sabe administrar o ambiente de um evento com a importância política dessa luta Cassius Clay-George Foreman e aproveitar a infinidade de personagens interessantes envolvidos no mundo do boxe, o mais nobre dos esportes.



Marilyn tem bons dados, mas não inéditos. Mailer reescreve outros livros com um texto certamente apaixonado, mas decepcionante para uma biografia. Solução é encarar o livro como um ensaio (sobre masturbação, diria Paulo Francis), mas mesmo assim, as opiniões dele sobre cinema e estrelato não são as melhores.

Já que falei de Francis: (FSP, 09/09/89) (*) Mailer, Norman - Mailer tem o problema que Truman Capote diagnosticou bem. Falta de obra-prima. Nenhum dos seus livros evoca afeição permanente, ou marcou qualquer época. Bons eles são. O melhor continua sendo o romance realista dos anos 30, Os nus e os mortos, publicado em 1948... Mas Mailer não escreveu nada que se comparasse em impacto e memória a A sangue frio, de Capote, Complexo de Portnoy, de Roth, O planeta de mr. Sammler, de Bellow, ou até Myra Beckenridge, de Vidal.

De qualquer jeito, ele fundou a Village Voice.

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Gabi tá brocando, caderno especial na Folha deste sábado, só dela. Seu blog está em excelente fase, mostrando aquela visão bem particular dela sobre Sampa, com texto gracioso, leve e inteligente. Nesse último post, vale também visitar os comentários para ler a piada sensacional de Tiago A.

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Voltando a Mailer, esse mundo de grande reportagem e pauta livre tá me esgotando. Monografia é mais ou menos sobre isso na Piauí. Tomara que fique pronto (e bom) a tempo, até porque quero voltar a ler mais, e outras coisas. No meu aniversário, ganhei do casal 20 do jornalismo baiano, Vítor Pamplona e Emanuella Sombra, uma coletânea de críticas de Rubem Biáfora e o Groucho-Marxismo de Bob Black. Só deu pra ler o primeiro, ótimo.

Em casa, ganhei o catatau que é a biografia de Capote. Tem um texto muito bom de Sérgio Augusto que saiu no Estadão, acho que ano passado, contando (a partir dessa biografia) uma festa à fantasia que o autor deu em NY. Se alguém me ensinar a fazer posts-extensão, posto aqui. O livro tá intacto ainda.

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Últimas coisas que li de ficção: Cães Negros, de Ian McEwan, já completamente polido em 90 e poucos. O livro fica na cabeça, sempre com essas estruturas temporais não convencionais e incorporando sempre reflexões tristes, humanas e sofisticadas sobre criação artística. O Santiago de João Moreira Salles tem a ver, mas a metalinguagem sem contorcionismo e os pulos no tempo têm muito a ver, em cinema, com Fale Com Ela e Má Educação, dois Almodóvar especiais. Parece que o espanhol quer filmar a novela mais recente de McEwan, Na Praia.

Li também o instigante, mas definitivamente desfocado Minha Vida, Uma Farsa, de Peter Carey. Começa muito bem a história da editopra de uma revista de literatura e a investigação de uma fraude. Personagens fictícios ganham vida, gerando umas três camadas de criação, ao menos. Carey não consegue administrar tudo.

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Todos os parabéns a Roberto Nunes pela iniciativa de trazer cinco filmes de Cassavetes para Salvador, mas no Cinemark não tá rolando. A primeira semana, com Sombras, foi um desastre, e Faces também foi cancelado por falta de equipamento adequado. Não desisti.

Ontem, fui ver A Morte de um Bookmaker Chinês. Além de um erro de projeção (não por falta de equipamento, mas por desleixo), as legendas ficaram fora do quadro um bom tempo, até que apareceu um funcionário da limpeza, e alguém pediu pra avisar o projecionista.



Consertaram, mas além do climão gerado pela dificuldade de ver o filme direito, a platéia típica do Cinemark, arredia a desafios, se manisfestava permanentemente contra o ritmo do filme. O pior é que o pessoal não saía todo de vez. A cada cinco minutos, um casal abandonava a sessão, sempre a retalho, chamando atenção e quebrando o fluxo do filme.

Não sou especialmente fã da Sala de Arte - com aquele clima "charmoso", mas de salas medíocres -, mas acho que ali o clima seria mais favorável ao filme. Na Walter, já soube que há dificuldades burocráticas para a exibição da Mostra...

quarta-feira, novembro 07, 2007

Medo do palco

>>> Antes de Bergman, havia Alf Sjoberg. O recém-falecido Ingmar começou escrevendo roteiros para o mais velho, como Tormento. Em Morangos Silvestres, praticamente copiou o método de Sjoberg em Senhorita Júlia. Presente, passado e futuro convivem cenicamente, nos mesmos planos-seqüência. A cópia saiu melhor que o original. Embora Júlia tenha seu impacto, o virtuosismo da câmera acrobática distrai.


Nunca li nem vi montado no palco o texto original de Strindberg, mas, mesmo percebendo aqui e ali seus pontos fortes, sinto que foi sacrificado em “prol” da linguagem cinematográfica. O filme é rápido demais. Talvez Sjoberg tenha medo de teatro. Mais cabia fazer igual a Dreyer em A Palavra, e ser econômico. Talvez o filme mereça uma segunda visita (merece), mas seu excesso não é sublime. É sufocante - o resto do filme é relegado a segundo plano.

>>> Se tenho dúvidas em relação a Sjoberg, todas as certezas vão para Elia Kazan em termos de adaptação teatral. Não bastasse seu Um Bonde Chamado Desejo, Kazan usou Tennessee Williams em um filme ainda mais intenso (embora menos sofisticado). Boneca de Carne tem uma voracidade animalesca na análise dos instintos sexuais de uma jovem de 19 anos, o marido quarentão e o forasteiro sedutor.

A mise-en-scène de Kazan é invisível no bom sentido: a sensação de ver o filme é a mesma de ter acesso a coisas que não deveriam ter sido vistas, perfeitamente traduzida na expressão “eu queria ser uma mosca só pra ver”. O processo de sedução da garota, sozinha em casa numa tarde quente, é até hoje, um dos momentos mais sexuais que o cinema já viu, algo como aquela cena entre Laura Dern e Willem Dafoe em Coração Selvagem, mas expandida para sempre. Brutal.

segunda-feira, novembro 05, 2007

As Coisas da Vida

Reis e Rainha: Queria ver no cinema, mas perdi. Saiu em DVD, mas nenhuma locadora conhecida comprou. Baixei, vi ontem, e acho que não é exagero dizer que esse é um dos filmes mais importantes para mim, em muito tempo, num nível completamente pessoal. Tem aquela qualidade de provocar identificação imediata sem cair em verdades universais e exploração de estereótipos - aliás, "tendência" do cinema americano, com suas análises do subúrbio.

Esse processo de identificação é feito de outra forma. Cria personagens fortes e tridimensionais, que demandam nossa atenção. O artifício óbvio é o contrário, os personagens querem se identificar conosco, platéia.



Emmanuelle Devos

O filme é dividido em dois segmentos: um dedicado a Nora (Emmanuelle Devos), empresária de uma galeria de arte na iminência de perder o pai para o câncer; o outro segue Ismaël, seu ex-marido endivididado e internado numa clínica psiquiátrica.

Há tanto sentimento na história dessas pessoas vivendo momentos de decisão, que o resultado final é inegavelmente doce, sem que isso signifique escapar em um milímetro de toda a dor que a virada dos 30 provoca (deve provocar) na vida das pessoas.

Será por acaso que o filme começa e termina com Moon River? Pensando agora, tem a ver mesmo em tom com a historinha do escritor apaixonado pela prostituta Holly Golightly. Estilização à parte, a graça da própria vida unida à melancolia da falta de perspectivas é o tema comum entre as garras afiadas de Truman Capote (e Blake Edwards) e a inquietação cotidiana de Arnaud Desplechin. De qualquer jeito, é só uma interseção.

Aliás, maravilha de senso de humor do filme, lembra aquele belo Conte Comigo, que deu uma indicação ao Oscar a Laura Linney tem uns cinco, seis anos. Esse longa francês é ainda melhor, mais ambicioso, perfeitas duas horas e meia de projeção capazes de lavar a alma (e a cara) de quem estiver disposto a se encantar com sua poesia.



Mathieu Amalric

Último adendo: existe coisa melhor que a interpretação completamente anormal de Mathieu Amalric? Vivo, vibrante, sutil, histriônico - tá tudo lá. Trabalho muito complexo, sem o modelo pronto para decalcar, como é padrão mesmo nas melhores interpretações americanas hoje.

Ao que parece, a carreira dele está se tornando mais visível. Depois da precisa atuação em Munique (como o traficante de informações francês, filho de Michael Lonsdale), protagonizou o novo Schnabel... Nos seus créditos do IMDB, uma pilha de filmes que não chegou aqui.

sexta-feira, novembro 02, 2007

O amanhã improvável

O noir é o mais fatalista dos gêneros, mesmo que não seja exatamente gênero, e sim um estilo aplicado em melodramas policiais (?). Vi o comentário de Diego no post anterior, e aproveito para dar gás a umas idéias que estava tentando organizar desde que vi Homens em Fúria, mais um clássico do subestimado gênio de Robert Wise.

A história é antiga – os redatores de Cahiers du Cinema chamavam o diretor de Robert Unwise... Nada melhor que o tempo para decidir quem importa. Wise é geralmente associado aos seus megasucessos Amor Sublime Amor e A Noviça Rebelde, mas tem uma história muito forte nos anos anos 40 e 50, onde era destacado pela excelência técnica e uma visão de mundo amarga, sombria.

Não que isso tenha se perdido nos seus dois projetões vencedores do Oscar. Alguém já parou para pensar na função do epílogo de A Noviça Rebelde? O filme acaba, final feliz, e depois vêm aqueles nazistas, aparentemente do nada. Amor Sublime Amor, um filme que vi uma vez e não gostei, cresce na lembrança. O que há de mais triste do que a paixão sem perspectivas de Tony e Maria, abortada pela violência racial? Entendo os detratores (eu mesmo): a música distrai.

Em Homens em Fúria, o excesso não está à vista – o tratamento é depurado, seco, mesmo que virtuoso. A primeira coisa a chamar a atenção é mise-en-scène rigorosa. Wise constrói o filme em planos fixos estranhos, porque recusam o eixo habitual e filma os atores sempre um pouco acima ou abaixo do rosto, com leve inclinação. Plano-contraplano, e, claro, os detalhes. Há um imenso arsenal de imagens sugestivas que não adiantam a narrativa, mas possuem grande efeito. Num momento de espera dos personagens – o filme também pára – uma boneca na lama, um coelho na grama, um tiro.

Robert Ryan e seu assaltante racista

Como não poderia deixar de ser (Wise montou Cidadão Kane), essa justaposição de imagens fixas é sempre perfeita. Há magníficas transições de seqüências que criam pequenos efeitos de paralelismo nas duas histórias do filme, que se juntam no final: o desfecho de um acontecimento para o protagonista A sempre tem uma mínima implicação invisível (apesar de sugerida nas imagens) para o início de um fato para o protagonista B. O filme está cheio desses momentos Kulechov.

Na seqüência mais brilhante a dama do noir Gloria Grahame (de obras-primas como No Silêncio da Noite e Assim Estava Escrito) bate à porta de Robert Ryan. Ela pergunta ao ex-presidiário qual a sensação de matar. Ele diz que é bom. Os planos e contraplanos fixos (e anormais) vão ficando cada vez mais próximos, até que a câmera chega aos poros dos dois atores, focalizando somente os olhos. Corta para as mãos de Gloria, ela se afasta, ele puxa o cinto do sobretudo dela, que fica de busto despido. Ainda dá tempo de Ryan ir fechar a porta do quarto, e beijá-la (câmera bem perto, e a frase mortal da mulher casada: - Só dessa vez).

Momento wellesiano, e à vera, absolutamente inútil do ponto de vista da historinha. Grahame só entra no filme para fazer essa cena (tem outra antes, rápida). O todo é brilhante não só tecnicamente, mas também pelo nível profundo das coisas que são ditas (aliás, a seqüência vem logo depois de outro diálogo brilhante sobre racismo com Harry Belafonte – o outro protagonista), uma clara escolha de fazer cinema para adultos.

No fim das contas, temos um falso filme de assalto – perfeito e silencioso nas seqüências de ação o suficiente para impressionar o francês Jean-Pierre Melville, auteur de heist movies sensacionais, como Bob, O Jogador, e O Círculo Vermelho. Mas, veja, Melville, tão exímio narrador e cheio das filosofias, não me parece ter também esse tempo infernal de Wise.

Do tempo que se acha o discurso do diretor, perfeitamente expresso no título original, Odds Against Tomorrow. Ele não acredita no amanhã, e manipula com seu domínio técnico a expectativa em relação ao fim. É isso que une Homens em Fúria a Quero Viver (sobre uma condenada à morte esperando a execução) e a Punhos de Campeão, extraordinário filme de boxe passado em tempo real – a ação dura o mesmo tempo da projeção, 72 minutos. (Nesses dois últimos filmes citados, aliás, Wise filma o calvário humano como Bresson jamais conseguiu fazer – com a ressalva de que não vi um ou outro Bresson, mas conheço os “principais”).

***

Daí volto ao início do texto e ao comentário de Diego. Um grande artista como Fritz Lang rende muito bem no film noir justamente pela visão descrente – o amanhã é improvável. Não há segundo de Almas Perversas em que a tragédia não paire sobre os destinos de Edgard Robinson e Joan Bennett, algo amplificado aqui na resolução final, que retoma a estranha moral de O Destino Bate à Sua Porta, roman-noir de James M. Cain, nunca totalmente bem adaptado.

Almas Perversas se sustenta quase que inteiramente nisso – na certeza de que nada vai dar certo e no arremate impactante, que até obscurece as imprecisões que estão aqui e ali, mais precisamente nas atuações. Dan Duryea, por exemplo, o pior ator dos ícones noir, mina a força dramática do filme cada vez que entra em cena gritando. Joan Bennett não tem a menor idéia de como fazer sua dame vulgar e chula, e na dúvida, também grita em poses de falsa vamp.

Ainda bem que o filme se vira no escopo pessimista de Lang e no misto de triste e patético de Robinson, mesmo assim, só perfeito no epílogo. Enfim, um grande filme “pequenas avarias”.

Não vi Maldição, mas ouço as melhores coisas sobre essa fase americana de Lang, iniciada com Fúria e Vive-se Só Uma Vez, filmes aclamados – e um deles tem um novo Henry Fonda no elenco, imagino que tão brilhante como sempre. Sobre M, nada muito diferente, Lang também não acredita no futuro.

Arthur Kennedy, à esquerda da foto

Agora, sempre acho que se fala muito pouco sobre Rancho Notorious, ou O Diabo Feito Mulher, improvável faroeste de Lang com Marlene Dietrich, do começo dos anos 50. A Marlene o que é de Marlene, mas duas coisas me impressionam mais nesse filme. A primeira é a cena do estupro e assassinato da jovem no início, o que motiva a vingança do protagonista contra o amante de Marlene.

O faroeste clássico tinha muitos tiros, mas violência mesmo está guardada para esses momentos infernais. Quanto suspense e crueldade há na contemplação do destino da garota, um brilhantismo de sugestão.

A segunda atração do filme de Lang é o próprio ator-vingador, Arthur Kennedy, sempre um dínamo de ódio. Ver seu rosto obstinado em busca de reparação com sangue já estabelece todo o clima que Lang precisa para fazer seu filme existir. Nada como um acerto de contas previsto para as cenas finais. Eu já disse isso, o amanhã é improvável.

Última digressão (mas nem tanto assim): tem atores que são praticamente definidos nos traços do rosto; Peck e Cooper são a justiça, Wayne é a solidão insuportável. Kennedy seria a representação perfeita da tragédia do fraco.

No violentíssimo (no sentido raro da palavra) faroeste Um Certo Capitão Lockhart, James Stewart chega a uma cidadezinha dominada por um único homem. O tal homem é assombrado por um sonho (profecia? Bíblica? Grega?): vai ser morto por um forasteiro. O que ele não sabe, e o filme nos mostra, é como o filho adotivo (Kennedy) se converte no algoz do sonho. Não sei porque, mas dá para ver na cara dele isso tudo, nos traços do rosto, como se a fraqueza de espírito e suas repercussões violentas fossem uma característica física.

Sempre excelente coadjuvante, a carreira dele rende uma boa semana de cinema – só dos que eu vi, lembro imediatamente da pequena participação como o repórter americano em Lawrence da Arábia, o assustador pai-estuprador de A Caldeira do Diabo, o irmão amargurado de Deus Sabe Quanto Amei e o policial cansado de Horas de Desespero, além do esguio e pouco confiável ex-criminoso de E O Sangue Semeou a Terra, faroeste de Anthony Mann, mesmo diretor de Um Certo Capitão Lockhart.


Nem lembro dele nos filmes, mas ora, o wikipedia também lhe dá crédito em dois filmes geniais do início dos anos 40, ambos de Raoul Walsh (caolho como Fritz Lang): O Intrépido General Custer e O Último Refúgio. Todos os filmes desses dois parágrafos existem em dvd. Caramba, às vezes ele some da mente - também está em Tubarão, de Samuel Fuller, mas ali a maior atração é Silvia Pinal.

quinta-feira, novembro 01, 2007

Hate mail

"Porra, cara! Como vc escreve merda. Pretenso intelectual e sem consistência. Lambe botas de críticos antigos. Falta personalidade, conhecimento e inteligência. Sobra banha."

Demorou, mas finalmente chegou a hora desse tipo de mensagem. Pelo que vejo na internet, sei que isso não acaba fácil. Ainda assim, uma tentativa de diálogo:

Leitor anônimo, se você não gosta do que escrevo, elabora. Fale da merda que eu escrevo. Sempre gosto de argumentos. Se você acha que tudo que escrevo é merda, ignore, já que não sou digno do seu tempo. Se você realmente acha que precisa dizer isso para me colocar no meu lugar, está perdendo seu tempo. Você sabe que estou engordando cada vez mais (estou mesmo, sem problemas), mas não me conhece a ponto de saber que, se há alguém que não tem a si mesmo em alta conta, esse alguém sou eu.

Sobre sua única tentativa de argumentação, dizer que lambo botas de críticos antigos... Você tem razão, mas não vejo no que isso é demérito meu. Admiro mesmo o trabalho de pessoas experientes e com bom repertório cultural. E?

Se você tem algo mais a dizer, comenta.