quarta-feira, fevereiro 27, 2008

O mais negro inferno da alma

Nunca li Proust, mas não preciso ter passado por aqueles sete livros para saber por que o sonho da vida de Luchino Visconti era adaptar Em Busca do Tempo Perdido. Visconti, o conde vermelho, o cronista da aristocracia decadente, e, por familiar com a queda, sabia como ninguém filmar o declínio do gênero humano. Nos filmes de Visconti, as pessoas estão sempre em processo de auto-destruição. Seu registro é dos mais ambígüos: aparentemente moralista ao ridicularizar os aristocratas, mas impecavelmente carinhoso, por identificação.

O outro diretor que mais ambicionava fazer esta adaptação era Joseph Losey, que têm seus pontos de tangência temáticos com Visconti: registro das classes altas, influência marxista, cultura infinita, amor pelo teatro, pela ópera e pela grande literatura. A diferença entre os dois é basicamente de tom. Visconti usou muitas vezes a lente do melodrama e do épico, e mesmo à distância, deixava no ar uma cumplicidade crítica. Losey é mais radical, distanciado, seco. No fim das contas, com essas diferenças à parte, a crueldade é a mesma.

A comparação entre os dois diretores me veio à cabeça porque finalmente consigo assistir Vagas Estrelas de Ursa, um raro filme de Visconti que, por problemas de direitos autorais, só existe em DVD no Japão. Os rips da edição, claro, não tinham legendas em línguas ocidentais, e o filme permanecia acessível na internet apenas a falantes de italiano ou japonês. Mas "driod", membro dos fóruns Cine Clásico, fez as legendas em espanhol e juntou o som original com a imagem de uma cópia dublada em alemão, já que o rip japonês tinha legendas forçadas.



Luchino Visconti e Claudia Cardinale, em clima oposto ao do filme

Mas deixemos esse papo técnico de lado. O que importa é que Vagas Estrelas é o filme mais enigmático e seco de Visconti, filmado em dilacerante p&b nos interiores de uma mansão em Volterra. A cidade está sendo destruída pela erosão, o que condena os habitantes à expectativa de um fim de mundo latente, próximo.

Os donos da casa abandonada - sobras de uma família desfeita - são os irmãos Sandra e Gianni, reunidos para uma homenagem ao pai, judeu morto durante a Segunda Guerra num campo de concentração. Sandra credita à mãe a denúncia que levou o pai ao campo. O novo padrasto teria sido amante da mãe, e a delação serviu para abrir o caminho do casal. A felicidade não veio: a mãe enlouqueceu.

Visconti mostra flashes dessa tragédia, e dos novos desdobramentos que o reencontro pode provocar. Além do casamento bastardo, a família foi abalada por uma história, que pode ou não ser verdadeira, de que Sandra e Gianni cometiam incesto.

Longe da habitual suntuosidade, Visconti vai revelando as arestas dessa relações doloridas pouco a pouco, por meio de diálogos que não se concluem e veneno de filigrana. O contraste da fotografia é opressor, sem cinzas, o que tira qualquer chance de se encontrar felicidade nas imagens do filme. A música, sempre presente e impactante, mas bem dosada, aparece menos do que o usual nos filmes de Visconti.

Enfim, o diretor faz um longa claramente deslocado do que costuma fazer, mais agressivo e minimalista, sem perder suas preocupações autorais habituais. Aproxima-se de vez do Losey. O resultado é impressionante, e merece mais de uma sessão. Já vi duas vezes.

sábado, fevereiro 23, 2008

A tela treme

Musical é para quem sabe mesmo. Tinha falado no post anterior como acho que Tim Burton falha totalmente na encenação dos números de Sweeney Todd. Agora, só por comparação, bom ver dois exemplos de brilhantismo de Bob Fosse. No primeiro, canção com o mínimo de movimento, igual ao filme de Burton, mas a tela treme de tanta tensão - tudo, claro, vem do jeito que Fosse filma e edita a cena. No segundo, a genialidade do cara fazendo o oposto total: coreografia elaborada, complicada, com dezenas de dançarinos. Os dois números são de Sweet Charity, ou Charity, Meu Amor, versão musical do Noites de Cabíria, de Fellini.

>>> "Hey, Big Spender"



>>> "Rich Man's Frug"

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

O equívoco musical de Sweeney Todd

Desde A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça Tim Burton não era tão violento. Não por acaso, o diretor volta ao sangrento mundo das degolas e decapitações, mas sem metade da graça do filme de 1997.

O problema de Sweeney Todd está justamente no motivo de aclamação do material original: a música. A história do barbeiro da Rua Fleet nasceu nos palcos da Broadway, como um musical do consagrado compositor Stephen Sondheim, conhecido por cinéfilos pelas canções de West Side Story, outro de seus espetáculas adaptado para as telonas.

Sob a regência de Burton, as músicas parecem pálidas, e principalmente, sem função narrativa. No mundo dos musicais, canção e dança devem expressar o que é insuficiente para as palavras.

O uso da música deve ser parcimonioso, construído como pequenos clímaxes, para que o artíficio não se balanize - afinal,é muito difícil que um filme tenha emoções "too marvelous for words" por duas horas seguidas.



Poucos cineastas ousaram romper esses padrões e partir para a ópera total, ou seja, o filme cantado do início ao fim. Jacques Demy, em Os Guarda-Chuvas de Amor, fez essa opção, mas tinha calibre para isso: seu longa é talvez proporciona uma hora e meia das mais emocionantes da história do cinema, um show de lirismo. Não cansa.

Seja com cuidado na colocação das músicas ou na perfeita tradução de sentimentos, o filme não pára. Se o filme tem que parar, a canção deve oferecer em troca ao espectador forte emoção ou dinâmica, contanto que o número se sustente. Basta ver os filmes de Bob Fosse: Sweet Charity e Cabaret param a historinha, mas a música e dança são eletrizantes, cheias de movimento e ironia.

No caso do filme de Burton, infelizmente, temos um típico caso de "tinta secando". Por melhores atores que sejam, Johnny Depp e Helena Bonham Carter cantam de maneira absolutamente banal.

O filme não é todo cantado, mas a música está até no "bom dia", sem que o filme tenha substrato emocional para tanto. As pessoas não precisam cantar, a música é desnecessária.

Mas, tudo bem, as canções não arrebatam, mas Burton teria alguma chance se fosse um diretor inventivo nesse gênero. Não é - os atores são filmados em primeiro plano, cantando (mediocremente), pronto. Não há dança.

O resultado é que o anárquico e cruel filme de Tim Burton acaba infelizmente soterrado por uma concepção cênica equivocada, que mina a força da ironia e da malvadeza da historinha.

O auge desse desencontro é o número musical que antecede o banho de sangue de Sweeney Todd. Johnny Depp canta sua raiva e sai gritando pelas ruas. Quando a canção acaba e estamos de volta à barbearia, Helena Bonham Carter olha para Depp com uma cara de "E daí?". Pois é, e daí?

>>> Por falar nisso, não percam.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

O fim do mundo

Nesse fim de semana, Oscar... Bom, alguns pensamentos rápidos sobre alguns dos competidores.

>>> Onde os Fracos Não Tem Vez: Poucos filmes merecem o título de obra-prima, ainda mais nesse período decadente do cinema americano. Esse último filme dos Coen merece. É, a um só tempo o filme mais bem dirigido dos irmãos, com tensão insuportável em todas as cenas, e radical retrato de certa América onde Deus ou qualquer outro tipo de redenção NÃO sobrevive. O mal está solto. Mais. Nota: seguir conselhos de Tiago A. e ler livros de Cormac McCarthy. (EDIT: o não em negrito não estava aqui, sumiu na digitação. A palavra faz toda a diferença)



>>> Juno: Passo. A mesma comédia adolescente esperta, idolatrada em excesso por quem se identifica com esse tipo de conflito raso e besta. Ainda assim, bons atores, bem escrito, agradável. Nada que justifique um Roger Ebert da vida dizer que foi o melhor filme do ano. Se bem que o gosto de Ebert só presta para clássicos. Ainda nessa década, ele aclamou Crash - No Limite, um filme que, dizem, foi escrito por Glória Perez e não por Paul Haggis.



>>> Sangue Negro: Paul Thomas Anderson, com o brilhantismo de sempre, abre novos caminhos na carreira, longe das várias histórias de vidas cruzadas de Boogie Nights e Magnólia. (EDIT: tinha uma repetição bizarra nesse período). Aqui, uma belíssima retomada de temas consagrados em meio cinema americano: o sucesso do empreendedor. A diferença é o olho de PTA - o filme não é uma ode ao espírito capitalista (como À Procura da Felicidade) nem apenas uma crítica. É um retrato de alguém profundamente ensimesmado psicologicamente, completamente incapaz de estabelecer laços afetivos profundos e obcecado, sim, pelo poder. Nada de clichês nesse perfil, apenas boas influências. Pela amargura, filme é primo próximo de Touro Indomável, de Martin Scorsese.

domingo, fevereiro 17, 2008

Dueto

Paula Toller fez show na cidade neste fim de semana. Isso me lembra Tim Burton. Eu estava querendo falar de Sweeney Todd, mas vejam esse vídeo primeiro - Toller e Chico cantam Dueto:



No fundo, Johnny Depp e Helena Bonham Carter fazem a mesma coisa que a dupla. Não sabem cantar e tentam se virar na base da interpretação. Chico usa a seu favor o fato de ser um não-cantor. Falando baixo suas letras sensacionais, provoca comoção nas mulheres - o homem do lado, próximo, pode ser tão inteligente e sedutor - e identificação nos homens - o cara detona sendo terreno, mundano, próximo, mesmo que nenhum de nós escreva letras assim.

O caso de Toller é mais complicado. Cantora claudicante, ela mudou de tática ao longo da carreira para continuar tendo apelo, e talvez nem saiba disso. Jovem, sua voz estridente soava bem nas letras adolescentes, de educação sentimental. Dava carisma e autenticidade às besteiras que escrevia.

Nessa fase com Chico, ela está, digamos, no primeiro ano de faculdade, pegou uns livros para ler e está de quatro por um professor mais velho. No vídeo, Chico está claramente cantando a garota ingênua e pretensiosa, vejam, mas um pitéu. Mais velha, depois de anos loucos de faculdade, ela se sustenta na presença sexual. Longe de ser uma mulher arrasa-quarteirão, ela é bonita e sedutora, faz cara de liberada e conquista. E mesmo sem ter se tornado uma boa cantora, essa sexualidade está na sua voz. Dá para ouvir.

Mas deixa o Sweeney Todd para lá, por enquanto. O esforço de Depp e Carter em mascarar a falta de voz não vale a pena. Eu volto ao assunto depois, porque acabei de ver Sangue Negro e não consigo manter a concentração escrevendo sobre outros filmes. Mas deixa esse também ficar decantando um pouco. Abraço.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Resumo da ópera

Meu primeiro carnaval na rua, trabalhando, mesmo que protegido num praticável, vidro e ar refrigerado. Mas hoje é dia de sujar os sapatos, cubro o Olodum. Cobertura de carnaval é no A Tarde On Line. Depois da propaganda, impressões cinéfilas e literárias dos últimos tempos:

>>> Da lista do Oscar, queria muito que Desejo e Reparação tivesse sido esnobado. Escrevi sobre o filme, mas não deixei tão claro o quanto me incomoda o fato do compositor da trilha insistir em seqüestrar o filme, com uma música cheia de notas altas, insistentes, querendo transformar o que deveria ser sutil num filme de terror. Dario Marianelli não é tão ruim quanto Philip Glass (que estragou As Horas e Notas Sobre um Escândalo), mas na primeira parte ficamos a sua mercê. E da edição vapt-vupt, que tenta concatenar as cenas com tempo de máquina de escrever.



James McAvoy e Keira Knightley, excelentes no novelão Desejo e Reparação

Falta sutileza, mas ainda bem que o filme vira logo um novelão muito bem filmado. Alerta: esse novelão não é Ian McEwan, o livro continua inteiraço, exigente, sutil, e infinitamente mais complexo até quando o filme tenta colocar as manguinhas de fora com a metalinguagem. Na comparação, o final do filme é pálido, mesmo com Vanessa Redgrave.

>>> Gosto mais de Conduta de Risco, de Tony Gilroy, a mente por trás do script da fenomenal série Jason Bourne. Infinitamente sóbrio e elegante, o talento de Gilroy como encenador supera sua habilidade como escriba, estranhamente ausente aqui. O filme acumula um plot mal estruturado, mas cada cena é tão bem feita em si que o filme não só conquista a adesão do público (minha), mas também faz relevar a resolução de novela das seis. O conteúdo não é a forma? Mais aqui.



Clooney, mais uma vez, detona

>>> Aqui, a versão bruta de um texto que foi enxugado para o Caderno 2 de A Tarde, sobre o aniversário de 80 anos de Jeanne Moreau. A edição ficou bacana, mas nesse texto tinha mais detalhes, e ainda sobrou coisa de que não falei.

>>> Acabei de ler há pouco Amor Para Sempre, de Ian McEwan - dos livros dele que li, o mais fraco, mas não sem momentos muito bons. Jornalista científico testemunha um acidente de balonismo e começa a ser eprseguido por outra pessoa que também estava no local. Tensão aqui é diferente. Num momento inacreditável de tão bom, McEwan manifesta essa angústia toda do personagem numa reação física - vontade de cagar - que nada tem de escatológico ou engraçado. Vários outros momentos de delicadeza, mas no conjunto, o livro não é tão forte.