sábado, junho 28, 2008

No fundo dos olhos

Havia escrito uns vinte parágrafos sobre minhas novas aquisições, mas numa dessas panes do Google, perdi o arquivo. Dizia que comprei dvds bem baratos, de R$ 12,90, nas Americanas. O primeiro é, enfim, Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-Wai.

A liga dos blogues fez recentemente uma votação dos melhores filmes da década até agora, e acompanhei discussão parecida no blog de Chico Fireman. Na prática, faço e desfaço essa lista, mas não chego a conclusão alguma, exceto que Amor à Flor da Pele é o primeiro da lista, aquele filme do seu tempo que é possível amar como se ama os clássicos, porque a eles esse filme recente nada deve.

***

Tiago A. escreveu recentemente um ótimo post sobre ironia contemporânea. Um dos aspectos, não exatamente da ironia contemporânea, mas do cinismo do nosso tempo, que faz parte do mesmo espírito, é a febre de citações. Na época gostei, mas acho que hoje detestaria ver Shrek, por exemplo, um filme que se constrói inteiro em cima das risadas que você dá porque entende referências. Que bosta.

Agora, eu vejo com gosto Vestida Para Matar e Um Tiro Na Noite, de Brian de Palma, com o maior dos prazeres. Para quem é desavisado, esses filmes, junto com Dublê de Corpo, passam como portifolios de imitações hitchcockianas, uma cena atrás da outra, igualzinho àquele filme de Scorsese. Diferença seria que De Palma dá uma atualizada, trocando a elegância dos anos 50 pela breguice do início dos anos 80/ final dos 70.



Angie Dickinson, em Vestida Para Matar

Esses filmes são isso, mas longe de ser SÓ isso. Arnaldo Jabor, ele mesmo, escreveu um texto muito bom sobre cinema e vida, usando a metáfora de duas cachoeiras. Vida e cinema como fluxo, um se alimentando do outro. Para Brian de Palma, as cachoeiras seriam cinema e cinema. Os filmes que citei no parágrafo anterior são alucinantes porque são as coisas mais elaboradas a reprocessar outras coisas, não como citação destacada, mas como elementos realmente orgânicos, coerentes.

Naquele universo de travellings geniais, as pessoas tomam banho toda hora em chuveiros suspeitos, ou observam os vizinhos com binóculos, e às vezes sobem em lugares altos onde há sinos tocando. A citação não entra em relevo com o resto do filme. Não é cinismo, nem ironia.



Esse olho no pôster, tudo a ver

De Palma, nessa grande fase, foi o grande cara a mostrar como o olho da gente tá falseado pelo cinema, sem que isso seja algo negativo. Ele simplesmente observa esse mundo louco cheio de objetos óticos, sem julgamentos redutores. Comprei Vestida Para Matar e Um Tiro Na Noite, R$ 12, 90 cada.

***

Muita gente baixa filme hoje para burlar a inacessibilidade dos filmes, e eu faço isso muito. Só espero que o YouTube não vire essa vávula de escape. La Jetée, um dos mais belos filmes de todos os tempos, está todo no site, 28 minutos na íntegra, Tv não é cinema, mas ainda dá para ver, mas YouTube?



Paris do futuro

La Jetée pertence a um modelo narrativo chamado de diaporama. Na prática, um grande slideshow, com uma narração acompanhando as fotos. Não tem "imagem em movimento", definição básica de cinema, e o diretor Chris Marker definiu seu curta nos créditos como "photo-roman".

O filme é uma ficção científica feita em 62. Depois da terceira guerra mundial, Paris está devastada, e homens com fortes lembranças (têm mente poderosa) são escolhidos para voltar ao passado e tentar reverter a crise que provocou o conflito. Nosso protagonista é perseguido pela imagem de uma mulher testemunhando um assassinato no aeroporto de Orly. Quando volta ao passado, é com ela que ele vai se envolver num amor sem futuro, claro.



Sci-fi: a melhor de todos os tempos, provavelmente

Kléber Mendonça escreveu no Cinemascópio, hoje no estaleiro, uma coisa que sempre me pareceu ultra-sensata. Os filmes hoje tentam nos bombardear com muita imagem, e esse tem poucas, mas todas certas. É tudo foto!

Para ver essa pérola, há o dvd nacional. Incrivelmente, o único lugar em que achei foi na sempre eficiente locadora Vídeo & Cia, no Largo 2 de Julho. Para baixar muitos arquivos no Emule. Só não vale YouTube.

Obs.: No YouTube, o arquivo de melhor imagem tem áudio em inglês, que tira toda a beleza da narração original, francesa. Obviamente, não vou linkar.

domingo, junho 22, 2008

Família, corpo, morte

Tantos filmes, tanta coisa para conhecer. Dia desses vi Irmãos, de Patrice Chéreau, diretor que eu não conhecia, à exceção de seu grandioso e sangrento A Rainha Margot, de 94, com Isabelle Adjani e Virna Lisi. Irmãos, lançado nove anos depois, aparentemente tem poucas semelhanças com o épico anterior. Longe de qualquer suntuosidade, o diretor conta uma pequena história de morte e reconciliação.

Thomas sofre de uma doença crônica no sangue, que diminui sua contagem de plaquetas e provoca hemorragias súbitas. Temendo a morte, procura o irmão Luc, de quem havia se separado muitos anos antes, sem dar notícia. Não tem trauma no passado, grandes revelações, ou excesso melodramático.


As pessoas se juntam e se afastam, como na vida. Quando os irmãos voltam a conviver, têm de administrar as lacunas desse relacionamento distante que já foi próximo, diferenças e afinidades, sentimentos e impressões. Na tela, uma interação incrivelmente real, tão terna quanto complicada, cheia da mesma idéia de pertencimento que há no Amantes, de John Cassavetes, embora os filmes tenham grandes diferenças.

De qualquer jeito, pensando bem, há um aspecto que une Irmãos a A Rainha Margot. Nos dois filmes, Chéreau faz um cinema com a mesma qualidade enxergada por Luiz Carlos Merten na obra de Visconti: antropocêntrico, ou seja, cinema interessado pelo corpo dos atores, pelo toque, pelo contato. Não exatamente de uma maneira erótica, mas orgânica. (Personagens estão freqüentemente sem roupa de maneira completamente desglamourizada, aliás).

O centro disso, em Irmãos, é a debilidade física. Há pelo menos duas cenas perturbadoras e incômodas sobre o efeito emcocional de uma doença. Enquanto visita o irmão internado, Luc ouve de um desconhecido um desabafo acachapante. O garoto tem 19 anos, uma doença no aparelho digestivo e espera o resultado de exames para saber se vai ser submetido a uma nova operação. A frase é desconcertante, coisa do tipo: "Eu sou muito jovem e não vou ser retalhado de novo", diz o garoto, mostrando uma enorme cicatriz na barriga.




A outra cena é ainda mais agressiva. Thomas se prepara para retirar o baço, e as enfermeiras começam a assepsia. Um zombido de barbeador elétrico corre o peito e abdômen do ator Bruno Todeschini para tirar o excesso de pêlos. Em seguida, a gilete, para tirar tudo de vez. A cena é longa, e barulho que esse processo faz é de gelar a espinha, perfeita ilustração da brutalização do corpo pela doença.

O final de Irmãos, não por acaso, vem numa praia, como o Morte em Veneza, de Visconti. A diferença é que, para o diretor italiano, a morte não vem eternização da agonia e auge de um momento patético, tanto no sentido moderno de ridículo, quanto no de paixão (pathos, patético, etc). Do mesmo jeito que O Tempo Que Resta, de Ozon, outro filme recente que revisita o desfecho viscontiano, Chereau associa morte a alívio, sem, ao mesmo tempo, ser redentor.

Aliás, ao contrário, o filme é tão honesto quanto deprimente. Fazer o quê? Algumas verdades sempre precisam ser ditas e lembradas: nossa fragilidade humana é uma delas. Em DVD.

segunda-feira, junho 16, 2008

Amantes

Eu já sabia que Gena Rowlands foi provavelmente a melhor atriz do mundo, trabalhando com o companheiro John Cassavetes. Ele era ator, que virou diretor, e deixou marca forte no cinema americano com uma obra de incrível honestidade sobre o que, em clichê, costuma ser chamado de "conflitos humanos".

Fez filmes sobre os problemas que as pessoas têm, suas alegrias, tristezas, e momentos de instabilidade. Seus longas estão mais preocupados com esse fluxo do que com historinhas, muito embora passem longe de qualquer hermetismo ou complicação. É a vida filmada de personagens que não morrem quando as câmeras se desligam. Os créditos sobem e a gente fica com saudade de sua gente imperfeita.

Pois bem, eu sabia que Cassavetes era um senhor diretor, com uma atriz magnífica à disposição. No entanto, não havia visto os dois, John e Gena, atuando juntos. Em Noite de Estréia, eles até dividem a tela, mas por pouco tempo. Em Amantes (Love Streams), apesar do título nacional, os dois interpretam irmãos.

Ele é um escritor, mulherengo, divorciado, com um filho que não vê nunca e certo pânico de dormir desacompanhado. Ela é Sarah, a irmã algo problemática, envolvida nas ruínas de um casamento mal-resolvido, uma filha que a odeia, com traços de histeria.



A surpresa disso tudo é ver Cassavetes tão bom ator quanto cineasta, dando resposta dramática perfeita ao talento da esposa, e, durante boa parte da projeção, segurando o filme sozinho. Não que as presenças de Cassavetes como intérprete antes disso tenham sido ruins. Atuou pouco nos próprios filmes, e, em obras de outros diretores, teve papéis bons em O Bebê de Rosemary, de Polanski, e A Fúria, de De Palma, que lembro agora. Bom, mas não especialmente marcante.

Em Amantes, ao contrário, ele deixa forte impressão. Talvez porque, diferentemente de Woody Allen ou Domingos de Oliveira, por exemplo, ter exposto os próprios problemas na carne de outros atores, o teor confessional de sua interpretação é tocante. Mesmo que, no frigir dos ovos, a inquietação de seu personagem seja pura ficção. Há sempre a tendência de associar a obra de certos diretores às suas memórias, mas é preciso lembrar de Fellini, que dizia filmar memórias inventadas, de mentira.

De qualquer jeito, acho que, nesse caso, há muito muito de John Cassavetes e Gena Rowlands, pessoas, na tela. Não exatamente aqueles imbroglios específicos, mas uma sensação de pertencimento e união, que, como marido e mulher, experimentaram da mesma maneira que os personagens, irmãos.

O Cassavetes ator me comove justamente pelo que consegue pôr para fora, tanto de si mesmo, da própria vida, quanto do personagem. Atuando, ele tem a mesma abertura do Cassavetes diretor para encarar os "conflitos humanos" de frente. Era um cara que sabia observar as pessoas, e seja com a câmera ou com o próprio corpo, tinha capacidade de transformam em ficção o que observava - em si mesmo e nos outros.

sábado, junho 14, 2008

Sexo com amor

Durante a última quinta, dia dos namorados, tentei postar várias vezes alguma coisa romântica por aqui. Uma cena de amor, uma lista de filmes com muito romance, mas achei tudo muito óbvio e repetido. Não os filmes, mas minha idéias escritas sobre eles. Como diz aquela letra, todo dia é dia dos namorados, e eu sempre falo dessas coisas de amor por aqui.

Com um dia de atraso, resolvi então postar a música que, ultimamente, sempre me vem à cabeça quando o assunto é amor. Sempre pensei em Mania de Você como um standard brega, um dos momentos de concessão de uma artista provocadora e inteligente como Rita Lee. Enfim, não havia reparado muito na música.

Há uns dois meses, revisitei o Acústico MTV que Rita gravou tem mais ou menos dez anos, e fiquei espantado pela beleza que Mania de Você ganha no dueto com Milton Nascimento, com arranjos floreados, cheios de violino. Poderia ser brega ao quadrado - o rasteiro querendo ser sofisticado - e, talvez seja. Verdade é que, do jeito que a música ficou, independentemente de rótulos, o tiro é certeiro no coração. (EDIT: Fui advertido que essa frase ficou brega. Não faz mal. Tá no clima).

A coisa que eu mais gosto é como o ritmo estendeu a duração da canção. Em dueto, essa lentidão me remete a algum momento de encantamento post coitum, olho no olho, reconhecimento da paixão no cansaço. O escândalo que a música provocou nos anos 70 se converte num deleite quase conservador, o sexo apaixonado de marido e mulher que não perderam a sintonia.

Sensacional:

domingo, junho 08, 2008

Os farsantes

Não dá para confiar em Orson Welles. Ele sempre disse que O Estranho, de 46, era seu pior filme, mas, caramba, que pior filme! Como a maior parte das obras dele depois de Cidadão Kane, o corte final é de estúdio, com várias mudanças em relação à montagem planejada inicialmente pelo diretor. Se por um lado ficamos para sempre sem saber como seria o resultado caso Welles tivesse a última palavra, de outro, temos filmes muito fortes, sustantado pelo talento superlativo do cineasta como encenador.

O Estranho é, como tudo na obra de Welles, um filme sobre verdade, mentira e aparência. Charles Rankin (o próprio Welles), professor de história de uma cidade pequena no meio de Connecticut, é fugitivo do regime nazista com identidade trocada, o cabeça da idéia de extermínio coletivo dos judeus durante o terceiro Reich. Mr. Wilson (Edward G. Robinson), é um detetive do FBI está no encalço do farsante.

Com lógica simples, o filme é um mecanismo impecável, com ações paralelas: um homem tenta encobrir provas, outro tenta revelar a verdade. Mesmo "destruído" pelos produtores, não há uma cena que não seja perfeita e aguda. O ponto alto são os close-ups, praticamente hitchcockianos. Pânico, pavor, inteligência - tudo arrancado da cara dos atores, que tomam a tela várias vezes durante o filme, sempre nos momentos exatos.



O melhor de todos é na cara suada do próprio Welles, momentos antes da derrota, animal brilhante e acuado numa torre de igreja. Nessa cena, aliás, ele menciona rapidamente uma frase que seria a base de seu célebre discurso em O Terceiro Homem, sobre ver as pessoas do alto de um prédio, como formigas, esmagáveis.

Fotografia é o habitual show de luz expressionista que Welles tanto gostava, sob o comando do gênio Russell Metty, também responsável pela luz de uma das obras-primas do diretor, A Marca da Maldade. Engraçado é que Metty ficou conhecido por colaborações com cineastas que uisavam concepções visuais totalmente opostas: Welles amava o rigor das sombras no preto & branco; Douglas Sirk filmava o completo excesso em cores fortes e estouradas. Versátil, esse Metty.

***

"Não quero esse gângster". A frase é de Luchino Visconti, reagindo ao pedido da Fox que escalasse Burt Lancaster no papel principal de O Leopardo, o príncipe Salina. Para seu épico, Visconti queria Nikolai Cherkasov, o russo de Ivan, o Terrível, de Eisenstein, mas o ator estava bêbado, na Sibéria, ou coisa do tipo. O shakespereano Laurence Olivier estava ocupado, e sobrou para Lancaster. Sua atuação no filme, mesmo dublada, dobrou o conde-cineasta.

Para Burt Lancaster sempre foi assim. Saber atuar, no seu corpo de acrobata e cara de galã, era difícil. Ele era tido como um sub Marlon Brando, e perderia para ele papéis como Stanley Kowalski, na montagem original de Elia Kazan para Um Bonde Chamado Desejo, e Vito Corleone em O Poderoso Chefão, uns 25 anos mais tarde.

O estranho disso é Burt Lancaster sempre foi excelente ator, começando pelo noir em Assassinos e Baixeza, passando pelos sucessos de público dos anos 50, até os anos finais, na década de 80. Quando o filme era médio e o personagem raso, sua presença estelar resolvia tudo. Quando o projeto era forte, Lancaster era inexcedível.

Eu já admirava o ator, principalmente por seu lindo papel em Atlantic City, de Louis Malle, e seu jornalista mau-caráter de A Embriaguez do Sucesso (acompanhado de um também genial Tony Curtis), mas o ponto alta da carreira dele só vi dia desses, em Entre Deus e o Pecado, filme que lhe deu o Oscar de melhor ator.



Com espantosa ousadia para um filme de 1960, Entre Deus e o Pecado é um ataque frontal do protestantismo. Lancaster é um representante comercial fracassado que resolve pôr sua lábia a serviço de uma igreja evangélica itinerante, que vai de cidade em cidade arrecadando fundos com seus cultos-show. A liderança da igreja é da Irmã Sarah (uma incrível e inesperada Jean Simmons), que administra a igreja como o negócio rentável que é.

Lancaster dá um show, na pele de um personagem complicadíssimo. Na tela, o vibrante show man capaz de convencer o público de que é mensageiro de Cristo, em ações que afundam no mau gosto, mas conseguem ser extremamente carismáticas. Essas cenas de "palco" são um choque, porque a emoção injetada contrasta na hora com o cinismo que sabemos que o tal pastor tem.

Ver Lancaster na tela se desdobrar em presença e falsidade é uma coisa metalingüística, como conviver com um ator muito expansivo, ser convencido por sua interpretação, e logo ser acordado quando o show acaba. Difícil isso, ser grandioso e intimista. Numa comparaçãorecente, vale lembrar de Daniel Day-Lewis em Sangue Negro. O cara é teatral E sutil, coisa complicada numa tela de cinema.

Além de Lancaster, o roteiro (adaptado de Sinclair Lewis) primoroso durante a maior parte da projeção dá outro grande papel ao provável melhor coadjuvante de Hollywood, Arthur Kennedy. Ele é um jornalista que acompanha de perto a trajetória da igreja, para fazer um grande perfil dos seus componentes, na melhor tradição americana de investigação. Kennedy serve como âncora moral do filme, imprindo dignidade, inteligência, esperteza e generosidade a homem que já viu muita coisa na vida.

Controverso, o filme foi indicado a cinco Oscars (quem ganhou tudo foi a obra-prima Se Meu Apartamento Falasse, de Billy Wilder). Levou três: ator (Lancaster), atriz coadjuvante (Shirley Jones) e roteiro, para o diretor Richard Brooks. Nessa mesa década Brooks ainda se superaria com sua insuportável e magnífica adaptação de A Sangue Frio, de Truman Capote.

Sobre esse Oscar para Lancaster, vejam como são as coisas. É o auge dele como ator, indefectível, genial, mas vendo a lista no Imdb bateu a questão na hora. Jack Lemmon, no mesmo ano, também foi ao céu em The Apartment. As duas escolhas seriam justíssimas, mas eu votaria em Lemmon.

sábado, junho 07, 2008

Tragédia dos diabos

Mais sobre Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto depois, mas, por ora, basta dizer que o filme é pá de cal em O Sonho de Cassandra. Dois irmãos & um crime é o resumo dos dois longas, mas Sidney Lumet, do alto de seus 80 e poucos anos, supera o também veterano em todos os critérios de tragédia familiar, em especial angústia e brutalidade.




O filme de Lumet ganha logo na importância atribuída ao crime inicial. Apesar das idas e voltas no tempo, isso é só estopim, ignição, dispositivo de propulsão. O que importa - e o longa está 100% dedicado a esse fim - é registrar os efeitos da violência dentro da família. Isso é o filme todo, e não os apressados vinte minutos dirigidos por Woody Allen.

***

O que eu mais gosto em Sidney Lumet é seu domínio de ambientação. Em alguns de seus grandes filmes, ele registrou como ninguém a efervescência da vida urbana, especialmente a partir dos seus crimes. Nos anos 60, a representação da cidade na América pouco fugia das ruas de estúdio, apesar do esforço de gente como Samuel Fuller, por exemplo.

No final dessa década, entrando nos anos 70, na onda de policiais violentos e catárticos como Bullit e Operação França, Lumet deixou sua marca fazendo os filmes urbanos mais tensos da época, registros de cidades à beira de explosão: Serpico e Um Dia de Cão, ambos com Al Pacino no auge dos super-poderes.




Esse último disputa com Rede de Intrigas (aquele que perdeu o Oscar de filme para Rocky), Doze Homens e Uma Sentença e O Homem do Prego o posto de melhor exemplar de sua filmografia. Isso, para mim, claro, que não vi sua aclamada versão de Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O'Neill.

***

Apesar desse histórico, o fator ambientação é coisa pouca em Antes Que o Diabo Saiba... O forte mesmo são as coisas básicas: texto, encenação e atores. Philip Seymour Hoffmann emplaca mais uma grande atuação, mas o melhor em cena é o veterano Albert Finney.




Ele mesmo, o Tom Jones de Tony Richardson, que também foi aquele advogado capacho de Erin Brockovich, e também o homem que parou um trem com um grito em O Fiel Camareiro, e o assustador psicopata de A Noite Tudo Encobre. E, importante, o homem por trás da transformação de David Webb em Jason Bourne.

O tempo passa, e o cara tá inteiraço. Vê-lo em cena em cenas como a que encerra Antes Que o Diabo Saiba... é muito mais intrigante do que ver Peter O'Toole interpretar a si mesmo aos 70 e poucos e implorar por um Oscar.

terça-feira, junho 03, 2008

Mais Cassandra

Katarina escreveu um excelente post sobre O Sonho de Cassandra, pensando o filme à luz de Dostoievski, referência obrigatória para esse Woody Allen mais soturno. Vou usar a comparação dela para destrinchar um pouco mais o que me incomoda no filme - o final.

Falei no post anterior sobre fecho de ouro. Isso não é pedir um twist, uma amarração na trama, nada disso. No cinema, e muitas vezes, na obra de Woody Allen, acabar bem um filme é deixar os personagem em suspenso, se afogando na merda, sem morrer nem ser salvo.

O final de O Sonho de Cassandra, súbito, se não premia os personagens com redenção, dá a eles um livramento, a morte. Em Crime e Castigo, a grande tragédia de Raskolnikov é continuar vivo o resto do livro, e para sempre, depois que as páginas acabam. O castigo é muito mais forte, narrativamente, do que o crime.


Laudau e Allen em Crimes e Pecados

Allen prefere o crime. É tenso, infernal, mas não honra as possibilidades que ele mesmo abriu no roteiro. O castigo não chega a vinte minutos de projeção, e acaba numa porta de saída fácil.

Não conheço o cara, repropduzo de ouvir falar. Acho que era Michel Cioran que dizia que a vida seria insuportável sem a possibilidade do suicídio. Morrer pode ser reconfortante. Não é o tipo de coisa que eu esperava de Woody Allen em seu filme mais sombrio - ao menos durante boa parte da projeção.

Quando as coisas desandam e se atropelam, Crimes e Pecados, sábio, genial, volta ao posto de origem. Allen nunca superou aqueles planos na cara de Martin Landau, falando sobre como voltou a dormir depois de encomendar o assassinato da amante.

segunda-feira, junho 02, 2008

Allen verde

Uma das coisas que eu mais gosto nos melhores filmes de Woody Allen é como eles são polidos, bem acabados, obras que estão finalizadas, prontas para serem exibidas. Dá para perceber esse grau de elaboração justamente nas cenas finais, que costumam arrematar com precisão tudo o que foi visto anteriormente, tipo o "fecho de ouro" do jargão jornalístico.

Basta lembrar de frases como "É preciso acreditar nas pessoas", de Manhattan, ou do close em Allen em Maridos e Esposas, cortando pros créditos, com What's This Thing Called Love, de Cole Porter. Ou lances geniais que passam no meio dos filmes sem muito alarde, como o barulho das balas durante a peça em Tiros na Broadway, ou a piada com o cheiro do enxofre na loja de departamentos, em Descontruindo Harry.

Muitos dos últimos filmes dele, ao contrário, parecem ter sido dirigidos em cima de rascunhos. Às vezes rascunhos não inspirados; outras, rascunhos de um grande filme. Esse último é o caso de O Sonho de Cassandra. A obsessão do diretor com tragédia grega ganha um tratamento bem próximo ao de Chabrol, tanto na parte técnica, cheio de planos insinuantes e movimentos de câmera cirúrgicos, quanto na temática, com suas questões de família.



McGregor e Farrell: tragédia em família

Filme vai, em geral, muito bem, mortalmente tenso até boa parte da projeção. De repente, as coisas começam a se precipitar, ser resolvidas rapidamente, como se ele tivesse enchido o saco. Sem explicitar muito: há dois planos de crime no filme. O primeiro cria angústia insuportável, lenta e cruel; o segundo, ainda mais grave, passa rápido demais na tela.

O problema é justamente ver o belo filme que Allen tem nas mãos se desmanchar tão rapidamente, como um castelo de areia atingido pela maré. O desespero que atormenta os personagens se reverte na angústia de ver uma grande obra ser posta a perder. Vale aquela metáfora muito usada por Kléber Mendonça Filho: o filme é uma fruta verde, colhida antes de amadurecer. De qualquer jeito, o efeito do filme ainda é forte, acho. Prova que rascunho de Woody Allen ainda é melhor do que muita coisa por aí.

Outro destaque: Philip Glass desta vez NÃO arruina o filme!

***

Falando de filmes brasileiros com potencial de popularidade, Estômago é uma grata surpresa. Primeira vez que vejo filme brasileiro no Cinemark (bem cheio) e a platéia não fica chateada. O filme é bom, tem um final excelente, com inesperado humor negro. Causa algumanirritação, no entanto, ver João Miguel dedicar seu talento mais uma vez a um personagem jeca. Não pela jequice, claro, mas pela repetição. Daqui a pouco ele pára no Zorra Total.