sexta-feira, agosto 29, 2008

Uma cidade que nunca dorme

Muito me incomoda essa peça publicitária do Manhattan Square, que põe "It's Up mto You, Salvador, Salvador", na letra de "New York, New York". É de uma jequice ímpar, risível, inigualável. De qualquer jeito, ouvir essa aberração me faz lembrar o quanto eu gosto da versão original. Não, não é de Sinatra, mas da trilha do belíssimo filme de Martin Scorsese com o mesmo título, que, aliás, é muito subestimado. Uma obra-prima, na verdade.

aqui a primeira versão, cantada por Liza Minnelli no auge do clímax da história. No filme, dizem que o autor da letra é o personagem de Robert de Niro (fantástico, fantástico), mas, claro, o trabalho é de John Kander e Fred Ebb, compositores famosos pela parceria com Bob Fosse (Chicago, Cabaret).

***

Por outro lado, genial essa campanha do TSE para as eleições 2008, mostrando coisas estranhas indo mal por 4 anos. Minha peça preferida é essa aqui, da garota que começa a andar em círculos quando fica nervosa. Seja lá quem teve a idéia - e quem dirigiu o comercial - meus parabéns. Quando vi pela primeira vez tive de me ajeitar na cadeira.

Parece coisa de Borges, completamente insólita, dirigida por Philippe Barcinski. O trabalho desse cara chegou ao longa-metragem ano passado, com Não Por Acaso. O filme é muito bom, mas os curtas... Esses sim, te pegam pelo pescoço. Palíndromo ou A Janela Aberta, qual o melhor?

quarta-feira, agosto 27, 2008

Linha de Passe

Em duas sessões na segunda e uma na manhã de terça, Linha de Passe, novo filme de Walter Salles e Daniela Thomas, foi exibido pela primeira vez para uma platéia brasileira. Pela terceira vez, assim como em Central do Brasil e Abril Despedaçado, o diretor escolheu a capital baiana para ser a primeira platéia nacional para seu novo longa. "Tenho laços afetivos com a Bahia, desde a filmagem de Central, em Milagres e Vitória da Conquista", disse num bate-papo com estudantes de terceiro ano e universitários realizado na manhã de ontem.

CONTINUA

domingo, agosto 24, 2008

Amar é sofrer

Até quinta, na Walter da Silveira, programa imperdível: Os Guarda-Chuvas do Amor, de Jacques Demy, volta à cidade em película, depois de exibições no início do ano em DVD. Revisto, o filme, que já era um dos meus preferidos de todos os tempos, parece crescer ainda mais rumo a territórios não incialmente mapeados de melancolia e tristeza.

Saí do cinema atordoado, lembrando de O Clamor do Sexo, de Elia Kazan, com sua história (de amor) sobre oportunidades perdidas. Os Guarda-Chuvas, embora seja um dos filmes mais excessivos de todos os tempos - ultra-colorido, todo cantando, estridente (só perde pro Satyricon de Fellini no quesito excesso) - dá um belo capote no espectador.



A exuberância daquela coisa vai cada vez mais se deslocando da vida dos personagens: quanto mais excesso, mais tristeza. Genevieve trabalha na loja de guarda-chuvas da mãe e se apaixona por Guy, um mecânico. Ele vai para a guerra da Argélia, e ela, grávida, acaba casando com outro.

A redenção desse amor não está no caminho do roteiro, que aplica uma cena final que desafia os limites do cáustico. Engraçado que, para um musical que estoura tanto o cor-de-rosa, o filme termine de uma maneira tão crua, seca, e real, mesmo com a música alta. Imprescindível e fundamental.

>>> La Signora di Tutti é uma das muitas raridades da carreira do alemão Max Ophuls. O filme foi rodado na Itália, um ano depois que ele fez uma versão francesa para sua obra-prima alemã Liebelei, com Magda Schneider, mãe de Romy. Sua estrela é a monumental Isa Miranda, e o filme tem todos os prazeres que a obra do cineasta nos proporciona habitualmente.



O título do filme se refere à estrela de cinema Gaby Doriot (Miranda), encontrada à beira morte no início do filme, após uma tentativa de suicídio. Num momento rápido de lucidez, logo antes de ser dopada para sofrer uma cirurgia, Gaby começa a lembrar sua trajetória, desde a menina de beleza perigosa demais para ser exposta a um casamento frustrado com um viúvo rico.

Seguem-se uma hora e meia de melodrama do mais alto nível, com o corte romântico do século XIX típico do autor e sua câmera que parece valsear junto com os personagens, mesmo com as limitações técnicas de 1930 e poucos. Enfim, mas um grande perfil de mulher assinado por Ophuls, que, vale lembrar, dirigiu jóias indeléveis do cinema como Carta de Uma Desconhecida, Desejos Proibidos e Conflitos de Amor. La Signora di Tutti está praticamente no mesmo nível, e merece ser redescoberto.

quinta-feira, agosto 21, 2008

Wim Wenders reafirma...

Se houve um ponto alto na conferância do diretor alemão Wim Wenders em Salvador na noite desta quarta, 20, dentro do projeto Braskem Fronteiras do Pensamento, foi a apresentação de dois curtas realizados pelo diretor no Congo em 2006, meses após o fim da guerra civil que assolou o país africano por três décadas. Mesmo que a obra de ficção recente de Wenders mostre um artista em decadência, os documentários dele, desde Buena Vista Social Club, contradizem essa idéia.

CONTINUA

terça-feira, agosto 19, 2008

Porque amamos Truffaut

Caralho, tem uns dois anos que não via esse curta de Truffaut, Les Mistons. O troço não tem 20 minutos, mas desce amargo como fel, mesmo que tenha essa cara doce de história de infância, em que garotos se apaixonam por mulher mais velha. Truffaut era romântico, mas um romântico completamente cético. O amor pode ser lindo, mas morde, e a ferida é feia.



sábado, agosto 16, 2008

Allen por Allen

Vicky Cristina Barcelona, novo Woody Allen, está sendo lançado nos Estados Unidos. A EW o chamou para comentar 12 de seus filmes, aqui. Meus Allens preferidos, nesse post. Mantenho a lista. Mais Woody Allen neste fim de semana. Até mais.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Esperando O'Neill

Faz um tempinho já -dois meses?- que interrompi minha dieta literária para ler um mobral de história da arte, coisa sobre a qual sempre quis ter um pouco de conhecimento. Comprei um livro da Ediouro, "Arte Comentada", que parece uma revista. Texto básico, informativo, que funciona bem como apresentação.

Tem umas duas semanas que estou parado entre o início da fotografia e o impressionismo, por uma espécie de esgotamento. O assunto é de fuder, mas preciso ler outras coisas. Ler piauís velhas é ótimo (ainda estou em abril), mas não resolve.

(Mesmo assim, a revista continua tendo pelo menos um texto muito bom por edição. Em abril, destaca-se Os Órfãos de Eufrásia, de Marcos Sá Correa, sobre como a cidade de Vassouras torrou a herança milionária da namorada de Joaquim Nabuco. Aliás, alguém já leu A Sucessora, da filha de Joaquim, Carolina? Novelão curioso, campestre e aristocrático. Lembrei dele lendo a reportagem).

Nesse ínterim, li uma peça, mas continua tendo problemas em "ler" textos de teatro. É uma experiência meio brochante, mesmo quando o texto é genial. Só fico pensando na encenação da coisa, e a peça só se realiza na minha cabeça quando vejo uma montagem, mesmo que cinemotográfica.


Katharine Hepburn, em Longa Jornada Noite Adentro

O texto que li é o Longa Jornada Noite Adentro, de Eugene O'Neill. Peguei para ler por um motivo nobre: a adaptação que Sidney Lumet fez no início dos anos 60 circula na internet num rip do dvd espanhol, com uns 35 minutos cortados da metragem original, que chega perto das três horas.

O único rip do filme na íntegra só tem legendas disponíveis em chinês, e não quero ver sem tradução. Adaptações teatrais costumam ser duras de ouvir no inglês puro. Por isso, li o texto para ficar mais fácil de fazer as legendas, mesmo que a tradução me pareça ruim, empolada.

O tom geral dessas peças de câmara da dramaturgia americana sempre me pareceu mais brutal, ao menos nas adaptações. Diálogos costumam ser explosivos e francos, transbordando de sexo, como em Quem Tem Medo de Virginia Woolf, de Albee, ou De Repente, No Último Verão, de Tennessee Williams. No cinema esses textos deram grandes filmes, aliás.

Na tradução brasileira da Abril, Longa Jornada tem essa franqueza, mas os diálogos vão na direção contrária, se perdendo em floreios desnecessários. Vamos ver se é assim mesmo no original.

Enfim, o filme dessa peça é tido como uma das obras-primas de Lumet, junto com Um Dia de Cão, Doze Homens e Uma Sentença, Rede de Intrigas e O Homem de Prego. Muitas "obras-primas"? Pois é, esses quatro aí eu vi e assino embaixo. Não é hipérbole.

domingo, agosto 10, 2008

Método

Alerta: Tem um filme argentino-espanhol sensacional nas locadoras e a R$ 10 nas Americanas, em DVD da Art Films. O Que Você Faria?, a despeito do título nacional ridículo, é adaptação da peça O Método Grumholm, que chegou a ser montada em São Paulo, como uma comédia.

O plot é simples e diabólico: um grupo de candidatos a vaga de executivo numa multinacional faz uma série de dinâmicas numa sala fechada, até que se defina quem vai abiscoitar o emprego. No filme, de 2005, o tom é político e dramático, e não há nervos capazes de resistir às navalhadas desse texto.



De acordo com Roberto Midlej, colega do jornal e dono da Casa de Cinema, o filme virou hit no mundo dos estudantes de administração. Apesar do rótulo, ótimo: quando mais gente vir, melhor. Escrevi mais quando o filme estreou, no Coisa de Cinema. Enquanto isso, esperamos ansiosamente A Questão Humana, de Nicolas Klotz, que dizem ser igualmente virulento em relação ao grande esquemão de moer gente das grandes corporações. Parece coisa de DA de história, mas, na tela, o efeito é aterrador.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Trufô

Nesse último fim de semana completei a filmografia de longas de Trufô. O fecho, de ouro, foi As Duas Inglesas e o Amor, a segunda adaptação do diretor de Henri Pierre Roché, o mesmo autor de Jules e Jim. Os filmes não podem ser mais diferentes formalmente, mas têm muita coisa em comum.

Se no longa de 62, Truffaut faz um cinema bêbado de amor em cada frame, com pulos de tempo, câmera inquieta e edição frenética, o clima de Duas Inglesas é acadêmico de uma forma que pode-se suspeitar que a crítica dele ao "cinema francês de qualidade" era pura hipocrisia.



Ledo engano: o filme pode ser tradicional, mas jamais é engessado, como os longas que o diretor criticava quando escrevia sobre cinema. Em Duas Inglesas, por meio de truques antigos como o uso incessante do narrador, inserção de quartas de maneira antiquada (ator fala para a câmera), e delicadeza cênica de época, Truffaut mostra sua face mais forte, a de romântico inveterado - no sentido literário - , mas desconfiado.

O amor é o único motivo para continuar vivendo, mas é grande o risco de que suas conseqüências sejam devastadoras, emocional e fisicamente. Não se trata de cair no "artifício" do melodrama, mas de mostrar o quão humano esse gênero pode ser. Belo filme.

E agora, meu rate and rank do diretor:



20 - Uma Jovem Tão Bela Como Eu (1972) 0
19 - O Último Metrô (1980)**
18 - Fahrenheit 451 (1966)**1/2
17 - O Quarto Verde (1978) **1/2
16 - A Noite Americana (1973) ***
15 - O Amor em Fuga (1979) ***
14 - A Sereia do Mississippi (1969) ***
13 - Atirem no Pianista (1960) ***
12 - De repente num domingo (1983) ***
11 - O Garoto Selvagem (1970) ***1/2
10 - A Noiva Estava de Preto (1968) ***1/2
9 - Na Idade da Inocência (1976) ****
8 - As Duas Inglesas e o Amor (1971) ****
7 - A História de Adele H. (1975) ****
6 - Domicílio Conjugal (1970) ****
5 - Beijos Proibidos (1970) ****1/2
4 - Um Só Pecado (1964) ****1/2
3 - A Mulher do Lado (1981) *****
2 - Os Incompreendidos (1959) *****
1 - Jules e Jim (1962) *****

quarta-feira, agosto 06, 2008

Sem cinza

Depois de umas vinte novelas sem que fosse possível ver 10 segundos de cena, A Favorita acaba se destacando em relação à mediocridade das antecessoras. Não é nenhuma maravilha, mas não posso negar que o capítulo de hoje foi uma amostra de arrojo no geral, mesmo que continue tudo muito conservador nos detalhes.

Vejamos: a novela propunha uma ambigüidade inicial, com duas protagonistas. Uma boa, outra má - problema é saber quem é quem. Tudo indicava que essa dúvida se dissiparia já no nome das personagens. Uma se chama Flora, é pobre, amargou anos de cadeia e tem no rosto certa dureza. A outra se chama Donatela, é rica e extravagante, e sabota o namoro da filha com um garoto pobre.

Parece coisa dos anos 20, mas a dramaturgia de novela ainda é fortemente baseada no conceito de cinderela e numa moral católica que condena a riqueza, ao menos nos primeiros capítulos, antes que a heróina monte na grana.



Eu realmente pensava que a reviravolta de A Favorita fosse um blefe, mas aconteceu. Flora, pobre, é a má: agora ri alto da cara da mocinha e mata a sangue frio. Donatela é a boa, mesmo que tenha comportamentos de filha da puta. Como o personagem tinha de apresentar indícios de vilania, agora que a verdade aparece, Donatela acaba sendo o melhor papel que vejo em novela em anos - algo muito mais humano e falho do que a heróina imbatível.

O problema é que a direção da novela não sabe disso: assim que a verdade foi revelada, os caras simplesmente trocaram a trilha. Música de tensão para Flora, trilha chorosa para Donatela. A mocinha nova é muito boa, mas a vilã desgraçada precisa ouvir rock pesado no repeat batendo cabeça, chegar em casa, e rir da desgraça da outra. Não bastassem as tintas fortes, Patrícia Pillar continua incapaz de sustentar qualquer nota mais dramática, não importa o que me dizem os fãs de sua atuação em Zuzu Angel. Já Cláudia Raia, essa sim, está excelente. Tem o melhor papel e mostra muita energia em todas as cenas, o suficiente para que esqueçamos de que ela é, na verdade, uma exímia atriz cômica.

Enfim, volto à novela semana que vem. A Favorita pode ser melhor que o tem sido feito na Globo, mas nada que me faça romper a ração máxima de uma vez por semana. Esperemos a volta de Benedito Ruy Barbosa, de preferência com a presença de seu diretor-gênio, Luiz Fernando Carvalho.

sexta-feira, agosto 01, 2008

Pra cima

Já que estamos falando muito de Deus recentemente, dez filmes "transcendentais", para ver de fora do corpo.

10 - Alemanha Ano Zero, de Roberto Rossellini (Itália / Alemanha, 1948, em DVD): Edmund Koeler é um garoto de 11 anos vivendo e sustentando a família numa Berlim destroçada, logo após a capitulação na Segunda Guerra.



9 - A Lenda dos Beijos Perdidos, de Vincente Minnelli (Estados Unidos, 1954, em DVD): Gene Kelly interpreta um americano em visita a Escócia. Por acaso, ele acaba descobrindo uma vila que vive num tempo semelhante ao de 200 anos antes, e se apaixona pela garota mais bonita do local. Mas a passagem vai se fecha, e ele fica do lado de fora.



8 - Taurus, de Aleksandr Sokurov (Rússia, 2001): Lênin vive seus últimos dias isolado numa casa de campo, enquanto todo mundo à sua volta procura esconder os eventos políticos na USSR.



7 - Trono Manchado de Sangue, de Akira Kurosawa (Japão, 1957, em DVD): um ambicioso samurai é convencido pela maléfica esposa a matar o imperador do Japão e tomar o trono.



6 - Asas do Desejo, de Wim Wenders (Alemanha, 1987, em DVD): Damiel é um anjo berlinense que decide se tornar humano para experimentar o amor.



5 - Decálogo: um, de Krzysztof Kieslowski (Polônia, 1989): professor de física vive sozinho com o filho, a quem desafia a toda hora na resolução de problemas matemáticos. Um erro de cálculo* mostra algumas verdades ao professor. EDIT: a conta tava certa!, mas a tragédia vem mesmo assim.



4 - Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho (Brasil, 2001): oprimido pelo amor excessivo da mãe, a rigidez sufocante do pai e uma paixão incurável pela irmã, André foge de casa, mas é resgatado pelo irmão mais velho.



3 - Ondas do Destino, de Lars von Trier (Dinamarca, 1996): no interior da Escócia, Bess decide se casar com um forasteiro. A garota tem uma fé inabalável, mas, ao rezar para que o marido volte logo da plataforma de petróleo onde trabalha para que ela não fique mais sozinha , Deus devolve seu amado paralítico.



2 - A Palavra, de Carl Th. Dreyer (Dinamarca, 1955, em DVD): numa fazenda do interior da Dinamarca, uma família entra em colapso quando um dos filhos, Johannes, enlouquece e passa a dizer que é o próprio Jesus Cristo.



1 - A Ascensão, de Larissa Shepitko (Rússia, 1976): durante a segunda guerra, dois soldados russos em busca de comida acabam entrando em território dominado por alemães, são presos e passam somente a esperar o momento da execução.



EDIT: Claro, óbvio, que não esqueci de Bergman aqui. Ele está fora de concurso, já que, poderia colocar vários filmes dele, mas não consigo decidir qual. A obra dele é mais transcendental em conjunto do que filme a filme.

A violência como rito

Se há um filme que cresce desmesuradamente numa revisão, ele é A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. Passado o primeiro impacto de sua brutalidade, que pode ser vista como pornográfica e excessiva, a decantação torna mais visível a beleza e a necessidade imprescindível do sangue derramado em cada minuto da projeção.

O amigo Vitor Pamplona rejeita o filme de Gibson por achar desnecessária essa violência, uma vez que o dilema fundamental do cristianismo não é o sofrimento, e sim a dúvida: "Sou bom?". Logo, mostrar as chagas do redentir é incorrer no pecado da exploitation. Gibson no entanto, não está no nível do masoquismo gratuito, mas da imolação como meio para atingir o sagrado. A dúvida pode ser a essência do cristianismo, mas o rito básico de toda a Bíblia, no Velho e no Novo Testamento, é a violência e o sacrifício.



Desde os eventos mais próximos da parábola, como a saga de Jonas na barriga da baleia, até as adversidades enfrentadas por Moisés e pelo povo judeu no Egito, a narrativa bíblica é sempre a afirmação da vítima. O sofrimento, inclusive (principalmente?) o físico, é algo que deve ser enfrentado, e, claro serve de exemplo: não à toa a inserção na igreja se dá por meio de votos, ou seja, privações. O jejum, por exemplo, é símbolo de ascensão espiritual e limpeza da alma.

Nesse ponto, o calvário é o momento mais sintético dos meios cristãos de elevação. Como bom católico, Gibson capta a beleza desse rito, e celebra a violência porque nela reconhece o caráter fundador de sua fé. Pode parecer heresia a comparação, mas Dreyer fez um filme lindo sobre isso, também focado milimetricamente na imolação do corpo e no sofrimento: O Martírio de Joana D'Arc.

Dreyer pode ter ficado conhecido pela depuração narrativa, mas não acho que haja muita diferença entre seu preto e branco e o colorido barroco e estonteante de Mel Gibson, com luz genial do grande Caleb Deschanel - o objetivo é o mesmo. A violência é incontornável. Dela, surge a essência cristã, a dúvida.