sexta-feira, fevereiro 27, 2009

High and Low

Para encerrar esse assunto de Oscar, fui dar uma pesquisada para conferir se Slumdog Millionaire era realmente o pior filme a vencer o prêmio principal da academia. Eu não vi 10 dos 81 premiados, mas, tirando esses, acho que só Crash - No Limite consegue ser pior. Nesse rol dos terríveis, duas outras catástrofes também foram laureadas nos anos 2000: Uma Mente Brilhante, de Ron Howard, e Gladiador, de Ridley Scott.

Crash leva o prêmio por todos os motivos já conhecidos. Sua incrível apelação e falta de respeito à inteligência do espectador se manifesta nos diálogos didáticos ("Somos todos racistas às vezes"), toscos/básicos ("Estou transando com uma mexicana"), e melodramáticos ("Estou com raiva o tempo todo e não sei o porquê"), no tom exagerado dos atores (interpretam seus personagens sem cinzas como se fosse novela de Glória Perez, lá em cima - Sandra Bullock é a pior), e principalmente, na histeria da direção, que não hesita em subir música para arrumar as lágrimas mais fáceis e abjetas do cinema recente. Tem até uma canção final para a autocongratulação da plateia. No fim das contas, o filme passa por brancos e pretos e continuamos sem cinzas, rumo a um tranquilizante e ecumênico processo de recomeço - "Somos assim mesmo", chorei e posso ir pra casa. Slumdog Millionaire compartilha esse realismo-social de pacotilha com menos melodrama e mais cinismo. Os outros concorrentes são só maus filmes, óbvios, medíocres, mas capazes de se auto-embalar numa aura de prestígio. O pior é que para cada vitória absurda, ao menos um grande filme deixou de ser premiado, como se pode ver abaixo:

Os dez piores "Best Picture":



10 - Kramer vs Kramer, de Robert Benton (venceu All That Jazz e Apocalypse Now)
9 - Laços de Ternura, de James L. Brooks (venceu Os Eleitos)
8 - O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. DeMille (venceu Depois do Vendaval)
7 - Ziegfeld, de Robert Z. Leonard (venceu O Galante Mr. Deeds)
6 - Beleza Americana, de Sam Mendes (venceu O Informante)
5 - Rocky - Um Lutador, de John G. Avildsen (venceu Rede de Intrigas, Taxi Driver e Todos os Homens do Presidente)
4 - Uma Mente Brilhante, de Ron Howard (venceu Moulin Rouge)
3 - Gladiador, de Ridley Scott (venceu O Tigre e o Dragão)
2 - Quem Quer Ser Um Milionário?, de Danny Boyle (hum... não tem grande filme? Não vi Milk e Frost/Nixon)
1 - Crash - No Limite, de Paul Haggis (venceu Munique e O Segredo de Brokeback Mountain)

Já a lista dos melhores prova como, apesar de toda a tentativa de demonização da indústria, Hollywood pode produzir o mais perfeito cinema do mundo. Não há nenhum filme especialmente revolucionário ou difícil, mas a maestria pode vir da boa administração da linguagem já estabelecida. Para mim, o melhor de todos (e melhor filme de todos os tempos) é o épico intimista Lawrence da Arábia, um mastodonte que tinha tudo para ser mais uma peça histórica auto-importante, mas que sabe usar seu cenário grandioso para avançar fundo dentro de uma personalidade das mais complexas. Não consigo pensar, hoje em dia, num filme desse tamanho que termine de maneira tão ousada, num fracasso não-redentório.

Os dez melhores "Best Picture"



10 - Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan
9 - O Franco-Atirador, de Michael Cimino
8 - Perdidos na Noite, de John Schlesinger
7 - Casablanca, de Michael Curtiz
6 - Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra
5 - A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz
4 - Se Meu Apartamento Falasse, de Billy Wilder
3 - O Poderoso Chefão, Parte II, de Francis Ford Coppola
2 - O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola
1 - Lawrence da Arábia, de David Lean

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Oscar Bullshit

Well, ano passado o Oscar foi para Onde os Fracos Nâo Tem Vez, o melhor vencedor da categoria principal desde O Franco-Atirador, ainda nos anos 70. Em 2009, voltamos ao normal com a premiação da mediocridade. Quem Quer Ser Um Milionário?, de Danny Boyle, abiscoitou oito prêmios, incluindo direção, roteiro e fotografia.

A melhor coisa que se pode falar sobre o filme é que os créditos finais, à Bollywood, são sensacionais. De resto, temos uma obra (no sentido bíblico) claramente filha da puta e maleta, feita por um inglês muderninho que invade a ex-colônia com câmera na mão, muitos truques de luz e montagem acelerada. É o que se chama normalmente de "pop", rótulo que nesse caso implica a redução de complexidades e a valorização do efeito. Bom, Boyle fez aquela merdinha bem popular até hoje, Trainspotting, um filme que é cara dos anos 90, para pior. Se bem que ele também fez o ultra-cínico e impecável Cova Rasa, onde bem administrou sua própria superficialidade.



Tão comparando esse filme com Cidade de Deus por causa do visual (foto/edição), mas não sei se a comparação cabe, ao menos em dois aspectos. CdD era essencialmente local, e seu look mirava o interior de uma comunidade e seus conflitos intestinos, raramente se abrindo para o mundo exterior. Os travellings eram todos funcionais e labirínticos, a brilhante reconstituição de uma ratoeira.

Slumdog tem outras pretensões e traz todo um arsenal de cores globais, se aproveitando da babel indiana para garantir o timing de filme sintonizado com nosso tempo, tanto quanto as novelas de Glória Perez ou os longas de Alejandro González Iñarritu. Vez ou outra, até pela ambientação asiática, lembramos do genial Em Busca da Vida, de Jia Zhang-ke, mas ali o "timing" trazia uma preocupação humana que falta no filme de Boyle. Personagens são fantoches de fábula e lutam inocentemente por um final feliz, abordagem nada adequada às cenas de horror que vemos por duas horas. É um filme afirtivamente Pollyanna.

Daí a outra diferença em relação a Cidade de Deus, longa de narrativa aplicadíssima, envolvente, sem barrigas, completamente virtuoso na sua releitura dos filmes de máfia de Scorsese, como Os Bons Companheiros e Cassino. Slumdog é linear - o que não é um problema -, mas linear de maneira burra, com pessoas de papelão e uma mensagem tola. Tudo está escrito. "Maktub", diria Jade em O Clone. Minha cara de tédio só sumiu por causa dos espetaculares créditos finais, embalados pelo número musical Jai Ho, música que venceu o Oscar e é muito boa.

***

Sean Penn levou o segundo Oscar, hein? Não vi o filme, embora desconfie de Gus Van Sant em sua versão acadêmica, mostrada em Gênio Indomável. Prefiro o cara radical que fez um dos melhores filmes desta década, Gerry, além de Elefante e Paranoid Park.

EDIT: corrigi a info do número de Oscars do Slumdog e mexi em uma coisa ou outra...

sábado, fevereiro 21, 2009

His & Hers

Mickey Rourke e Kate Winslet deverão receber o Oscar nas categorias principais de atuação neste domingo. Consegui cópias dos filmes de última hora. Ladies first: Kate Winslet já teve trabalhos bem mais fortes que sua performance em O Leitor, mas é injusto afirmar que a premiação é apenas caso de conjunto da obra. Longe do seu tipo habitual de alma rebelde, Winslet faz um trabalho maduro e delicado como a ex-soldado nazista Hanna Schmitz.

Não há gritos, lágrimas e descabelamentos, mas a administração calma e consciente de um personagem difícil e desprezível, cuja principal característica é uma vagueza sentimental. Hanna é uma página em branco, descompromissada, seja relação aos crimes que cometeu ou à natureza de sua relação com um garoto adolescente.



Eu gosto bastante da atuação: seja por esse sensação permanente de que a personagem é vazia, tanto, mais uma vez, pelo despojamento da atriz, completamente à vontade em sua nudez e sem transformar isso num troféu de "coragem". Não é o auge de seu trabalho (Fogo Sagrado e Pecados Íntimos), mas ela continua precisa.

Ao contrário do filme, que, francamente, é de uma mediocridade assustadora, ainda mais com uma história que é puro dinamite. Daldry, depois de seu horrendo e pretensioso As Horas, joga mais um bom material na lata do lixo.

Sem ter visto duas das concorrentes ao prêmio (Melissa Leo e Anne Hathaway), eu votaria em Meryl Streep, perfeita em Dúvida. Claro que o personagem é muito bom, mas a falsa contenção da atriz é que dão sabor ao filme. O "line delivery" é genial, e cada frase é um rolo compressor: "Você apagou a lâmpada" é o novo "That's all". Dispensamos a histeria de Angelina Jolie, obrigado.

Entre os atores, Mickey Rourke deve levar o prêmio com toda justiça. Independentemente dos concorrentes (eu não vi Penn e Langella), sua atuação é um primor de emoção, sem sentimentalismos. O filme de Aronofsky surpreende, aliás.

Ninguém esperaria do insuportável "menino-gênio" que cometeu Réquiem Para um Sonho um filme tão generoso e despido de vaidades como esse. O diretor bebeu na fonte da lbrutalização do corpo como redenção, uma ideia bíblica lembrada por ele mesmo numa citação ao maravilhoso A Paixão de Cristo, de Mel Gibson.



Para mim, no entanto, o filme tem o bom gosto de algo de ter como norte coisas como Punhos de Campeão, de Robert Wise, ou Touro Indomável, de Martin Scorsese. Não que Aronofsky tenha alcançado esse nível de genialidade, mas, tendo baixado a bola, merece ter seu filme incluído na mesma linhagem, embora num patamar menor. Rourke, comandando tudo de coração aberto e completamente entregue, expondo as cicatrizes de sua vida louca, merece bastante o prêmio.

Sobre as categorias coadjuvantes, todo mundo sabe que Heath Ledger deve ganhar merecidamente seu prêmio póstumo pelo Coringa. Entre os outros concorrentes, não vi Downey, Jr. e Brolin. Hoffmann está indicado na categoria errada, já que seu papel é principal, e Michael Shannon é só um bobo da corte em Revolutionary Road. Para quem viu do que ele é capaz em Possuídos, de William Friedkin, é uma pena notar que esse reconhecimento vem por seu papel mais óbvio.

Eu vi as cinco atrizes coadjuvantes, e acho que o prêmio estaria bem entregue a Penélope Cruz ou a Marisa Tomei, e votaria nesta última pelo lindo e comovente papel em O Lutador. Como envelheceu bem Tomei: continua linda e adquiriu sensibilidade e humanidade tocantes. Lembra um pouco Elisabeth Shue em Despedida em Las Vegas, a melhor atuação num papel de prostituta de ... todos os tempos?

sábado, fevereiro 14, 2009

Filmes do Exílio #3

Acho que Anthony Mann está cada vez mais se tornando um dos meus diretores favoritos, especialmente dentro dos gêneros clássicos de Hollywood. Seu cinema é capaz de surpreender e empolgar até mesmo nos filmes menos prestigiados, os ditos menores. Almas em Fúria, por exemplo, é um faroeste quase sempre preterido na comparação com os westerns que o diretor fez com James Stewart, como E O Sangue Semeou a Terra, O Preço de um Homem e Um Certo Capitão Lockhart.

De maneira muito diferente, Almas em Fúria se impõe maravilhosamente como uma obra à altura de qualquer outra do cineasta, um turbilhão de encantamento que ganha destaque na sua filmografia por uma questão de gênero: é um filme extremamente feminista (sem o ranço ideológico, por favor), capaz de ver a mulher não apenas como objeto de cena ou catalisador sexual da tensão entre os homens, mas como protagonistas de suas próprias vidas, capazes de lutar de igual para igual e derrotar sem pena quem passa pela frente. Poucos faroestes entraram nessa área: Johnny Guitar, a obra-prima de Nicholas Ray, Parceiros da Morte, o doloroso longa de estreia de Sam Peckinpah, e, em menor grau, o delicadíssimo Rio Grande, de John Ford.



Almas em Fúria não se parece com nenhum deles: é quase uma versão viril e concisa de E O Vento Levou, com uma grande mulher americana de fogo nas ventas, um verdadeiro trator na pele da fantástica Barbara Stanwyck, um assombro, não de beleza, mas de carisma. Vance Jeffords é a herdeira de The Furies, um grande latifúndio construído pelo seu pai, T.C. (Walter Huston, além da perfeição) a partir do zero. Vance tem um irmão, mas é ela quem toma conta do gado, das contas da fazenda e da administração da casa desde que a mãe morreu, e o pai saiu para se divertir e torrar a grana que ganhou a vida toda.

Por mais de uma hora, não há nenhum conflito claro de faroeste, mas apenas o prazer de ver um personagem feminino tão bem resolvido e desenvolvido. Apenas aparentemente masculinizada, com roupas de homem, Vance é uma fêmea indócil, dividida entre dois homens. Juan é o mais velho de uma família de mexicanos que vive em The Furies, a contragosto de T.C., e, claro, completamente apaixonado por Vance. Os dois são amigos desde a infância e vivem tendo encontros furtivos no alto de montanhas de pedra nua. Sempre se despedem com um beijo na boca, e uma frase: “Till our eyes next meet”.

No entanto, Vance está mesmo apaixonada por Rip Darrow, o ambicioso filho de um jogador de cartas que perdeu suas terras para T.C. no pôquer. Ele também encontra Vance no meio da mata, e não deixa de ser um choque ver uma personagem que não é prostituta ou femme fatale beijar dois homens num intervalo de projeção inferior a cinco minutos, e com claras denotações sexuais. O filme é muito adulto sobre isso, sobretudo na relação entre T.C. e a filha: ele sabe ser incapaz de controlá-la, e admite essas aventuras como se ela fosse um homem. Sente orgulho, até, porque sabe que ela pode dobrar todos os homens, mas só se casaria com um que fosse igual ao pai.

As complicações começam quando o dinheiro interfere nessa relação. T.C. arma um golpe henryjamesiano para provar a sede de Darrow pelo dinheiro de sua herdeira. Em seguida, ele fica noivo de uma já passada viúva aventureira (a grande Judith Anderson, sensacional), que começa a se meter nos livros da fazenda e bater de frente com Vance, que não a suporta. É uma briga de foice entre duas mulheres espertas, mas isso é um faroeste e a hostilidade não fica no veneno de chá-e-biscoito. Em um dos muitos rompantes de destempero da protagonista ela desfigura a rival com uma tesourada no rosto, e declara guerra ao pai, que, em represália, manda enforcar Juan, o “amigo” mexicano de Vance.



O conflito do filme está enfim deflagrado, e não sem surpresa, vemos uma família se desintegrar por meio da violência, como é de praxe nos faroestes de Mann. No entanto, o registro aqui é outro, menos trágico e mais épico: a vingança de Vance é financeira, seu objetivo é levar o pai à falência e expulsá-lo da propriedade que ergueu. Parece-me uma coisa muito americana, e extremamente presente no filme: uma sede de terra e dinheiro que a princípio é apenas ensaiada (a própria Vance, a certa altura, manda queimar todos os povoados de mexicanos na propriedade, para facilitar um empréstimo à fazenda), mas que se revela completamente nessa última parte. Em mais uma prova da crença do filme na força feminina, aliás, é pelas mãos de uma terceira mulher que T.C. encontra seu destino, finalmente destituído de tudo que lutou para conseguir.

De alguma maneira, acho que posso dizer isso: tenho certeza que Tarantino viu esse filme. É mais um dos lugares onde a gente descobre sementes para Kill Bill, seja no misto de admiração e conflito da relação homem-mulher, ou na hostilidade que as próprias mulheres nutrem entre si, e, finalmente, como toda essa tensão é resolvida violentamente. Almas em Fúria é um filme raro, e bem à frente de seu tempo.

Outros filmes do exílio:

Não é possível haver um diretor mais preciso que Claude Chabrol. Se hoje em dia ele nos entrega ótimos filmes, não deixa de ser uma pena confrontá-los com um petardo como Ciúme – O Inferno do Amor Possessivo, feito há 15 anos, logo antes de ele fechar a torneira de obras-primas com Mulheres Diabólicas. Ciúme... (no original, só L'Enfer) foi um roteiro não filmado de outro mestre do suspense francês, Henri-Georges Clouzot, de As Diabólicas e O Salário do Medo.



Não há muito o que dizer sobre o filme: o marido acha que a mulher o está traindo, e vai ficando cada vez mais louco com a ideia. A coisa fica mais grave porque a mulher dele nada mais é que Emmanuelle Beart, a essa altura, a mais bela e deslumbrante fêmea sobre a terra. O cara não aguenta. Se a ilustração dessa loucura em sequências de fantasia já é genial, o suspense cresce quando o filme pisa na realidade e mostra a represália do marido louco à certeza de que foi traído. Explode em violência contra a mulher, em cenas montadas com metrônomo e Beart no auge de seus poderes também como atriz.

Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo
aperta os parafusos sem medo, e Chabrol encerra o filme com uma nota de ironia que só ele é capaz de filmar. Um arraso de imagem e tensão. Maravilha.

Em Direção ao Sul, de Laurent Cantet. Vi esse aqui na tv a cabo, com legendas em português luso. Bom, o cara dirgiu a última Palma de Ouro, Entre Les Murs, mas esse aqui pode ser resumido em uma onomatopéia: ZZZZZZZZZZZZZ. Até Charlotte Hampling tá meia boca.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Dúvida / Simplesmente Feliz

Dúvida, de John Shanley, foi indicado a cinco Oscars, sendo quatro nomeações para o elenco: Meryl Streep é candidata a melhor atriz, e Philip Seymour Hoffman, Amy Adams e Viola Davis concorrem como coadjuvantes. A quinta indicação é a de roteiro adaptado - indicação para o diretor, que escreveu o guião a partir da peça dele mesmo. Tanta láurea, mas o filme presta?

A pergunta é difícil. O texto é ultra-afiado, uma parábola sobre a suspeita. No caso, a irmã Beauvier acha que o padre Flynn abusou sexualmente um adolescente, e, mesmo sem provas, vai tentar derrubar o sacerdote. Os atores são mesmo muito bons, com o destaque habitual para Meryl Streep, um primor de controle, no mesmo estilo de sua atuação em O Diabo Veste Prada. Ela veste o personagem por fora, e vai controlando aqui e ali, minuciosamente, as emoções que deve transmitir a cada nova cena. É uma atuação primorosamente técnica, mas não digo isso de forma pejorativa, já que, no fim das contas, tudo o que o personagem exige Streep entrega, e de maneira muitas vezes surpreendente.



Vendo Streep fazer o que faz aqui só me vem à mente a cena de A Mulher do Tenente Francês, em que seu personagem, uma atriz, interpreta a heroína romântica do filme-dentro-do-filme. Há uma cena de cair o queixo em que Streep passa de um personagem a outro no mesmo plano, sem cortes. Uma fração de segundo e o olho já é outro, e emoções completamente distintas vem à tona, na hora. Não é fácil fazer isso, e fico imaginando que Streep domina tão bem sua freira xiita que a qualquer momento seria capaz de evocar seu amargor.

Embora essa atuação seja coisa de detalhes só captados por uma câmera de cinema, fico pensando por que eu, espectador, deveria ver esse texto na telona, e não num palco. O filme é só elenco e texto, e a encenação é paupérrima, com tentativas desastradas de desteatralizar tudo com planos tortos... Não seria melhor ser completamente teatral, acreditando no fato de que o cinema é uma arte mista e comporta o teatro filmado, como bem nos mostraram filmes do porte de A Palavra, por exemplo?

Se um diretor não é capaz de pensar seu texto inteligente em cinema - Gotas d'Água Sobre Pedras Escaldantes, de Ozon, ou Uma Rua Chamada Pecado, de Kazan, filmes de texto completamente cinematográficos e brilhantemente editados/montados - é melhor apostar numa filmagem mais crua ou ou então não filmar. É melhor do que entregar uma coisa disforme e mal resolvida, como esse Dúvida. Meio termo não rola. Um texto tão bom, aliás, merecia melhor sorte. Polanski dirigiu a versão da peça nos palcos franceses, e seria uma excelente escolha para adaptação, mesmo que, na minha cabeça, o texto traga o clima de um Joseph Losey como Estranho Acidente.

***

O caso de Simplesmente Feliz, de Mike Leigh, é mais complicado. O filme é sobre Poppy, inglesa irritantemente feliz a ponto de ser absoluta e completamente irritante. Roubam a bicicleta dela e ela acha ótimo, vive querendo ajudar todo mundo e não há nada que a faça tirar o sorriso do rosto. É quase uma Amélie britânica, mas quando o filme começa a ficar insuportável, envereda numa direção completamente diferente: os reveses vão se acumulando e Poppy continua decidamente feliz, quase como uma autista, incapaz de perceber o que acontece à volta.



É de propósito? Estamos diante de mais um personagem que usa a carapaça da felicidade como defesa? O filme não dá essas respostas, mas faz questão de deixar bem claro que não compartilha a mesma visão de mundo histericamente alegre de Poppy, e mesmo que o resultado seja vago (sobre o que é esse filme?), o incômodo permanece. Enfim, um filme de muitas perguntas e poucas soluções.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Mann & Alton

Não achei em vídeo, e os frames estão pequenos, mas fica aqui uma pequena amostra das imagens inesquecíveis de Entre Dois Fogos, exemplar da melhor cepa do film noir. Direção de Anthony Mann e foto de John Alton. Essa sequência é uma das mais belas que já vi, tanto pela mudança de planos - todos lindos e perfeitos - quanto pela intensidade de Claire Trevor sustentando o close da quinta foto, sob o véu, e narrando o off desesperado da cena. Na sexta foto, quando saímos do rosto dela e vemos a sala toda, parece que a personagem evaporou um pouco de tanto desgaste. A névoa na cabina do navio são partes dela.

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Filmes do Exílio #2

Foi Godard quem disse que os closes de Matei Jesse James, de Samuel Fuller, eram os mais intensos desde o clássico mudo O Martírio de Joana D'Arc, do dinamarquês Carl Th. Dreyer. Godard provavelmente não tinha visto Entre Dois Fogos, de 48, da fase noir de Anthony Mann, o mesmo diretor que se converteria ao faroeste nos anos 50 e faria, com a licença de John Ford, os exemplares mais radicais e impressionantes já vistos no gênero.

Entre Dois Fogos é implacavelmente veloz com uma trama básica de fuga, mas há tantos detalhes explícitos ou sugeridos que o filme se revela muito mais profundo que um policial de rotina. A começar pela fotografia de John Alton: se os melhores noir costumavam ser espetáculos de iluminação inspirados no Expressionismo Alemão, esse aqui deixa pra trás praticamente todos os filmes similares e parece ter sido realmente produzido nos anos 20, com a mesma equipe de Nosferatu e A Última Gargalhada.

É insuportavelmente escuro, as ruas parecem se dissolver na névoa, e os rostos são captados sempre com expressões de horror, sem que os atores precisem ser especialmente teatrais para passar essa clima de apocalipse. Na tela grande deve ser uma experiência completamente insuportável ver o rosto de Claire Trevor projetado no vidro de relógio de parede, enquanto ela toma uma difícil decisão, já nos minutos finais da metragem.



Mesmo com ambientação completamente oposta aos exteriores texanos, Raw Deal revela uma impecável coerência autoral com os faroestes de Mann: também é um filme sobre corrupção humana, e o fugitivo Joe Sullivan (Dennis O'Keefe, perfeito) tem a miséria espantada na cara cada vez que a namorada lhe pergunta porque ele virou bandido. Ele tenta uma resposta inconvincente, mas a questão fica no ar, sugerindo uma intervenção do destino como nas tragédias gregas. É o mesmo mecanismo que fazia com que Arthur Kennedy fosse projetado a matar o pai em Um Certo Capitão Lockhart.

Do mesmo jeito que desconstruía todos seus heróis de faroeste, Mann prepara uma bela armadilha: estabelece a namorada do protagonista como âncora moral apenas para escancarar a fragilidade dos bons: com a arma na mão e na hora certa, ela atira para matar, sem que seja preciso haver nenhuma mudança de caráter ou personalidade.

Numa cena terrível, enquanto o protagonista está isolado na casa de um amigo fazendeiro, um homem da vizinhança entra na sala, assustado com a ação da polícia. Ele acaba de matar a mulher: "Não sei por que fiz isso. Eu a amava". Ele mal entre no filme e já sai da sala, começa a atirar contra a policia e é fuzilado. A pergunta e a agonia do homem continuam no ar.

Outros filmes do exílio:

Um Retrato de Mulher, de Fritz Lang - Esse é o longa que Lang fez imediatamente antes a Almas Perversas, com o mesmo elenco principal: Edward G. Robinson, Joan Bennett e Dan Duryea. Um professor universitário conhece uma mulher na rua, a modelo de um retrato que ele admira numa vitrine. Os dois tomam um drink, vão para o apartamento dela, e, do nada, aparece um ex-amante ciumento, que agride o professor. Em legítima defesa, ele fere e mata o agressor com uma tesoura. Ligar para a polícia ou se livrar do corpo e apagar as pistas? A segunda opção, claro.



Daí o filme mergulha na trajetória masoquista do protagonista: seu melhor amigo é o investigador responsável pelo caso. O professor vai ficar extremamente próximo a tudo que acontece no inquérito, vendo o cerco se fechar em torno de si mesmo não sendo nem de longe um suspeito do crime. Um chantagista complica a situação, e depois do primeiro assassinato, mesmo para pessoas de bem, o segundo vem mais fácil. Saca a frase:

There are only three ways to deal with a blackmailer. You can pay him and pay him and pay him until you’re penniless. Or you can call the police yourself and let your secret be known to the world. Or you can kill him.


O filme não tem a vileza perturbadora de Almas Perversas, muito menos aquele final aterrorizante, mas é um exercício de tensão magnífico, um aula de narrativa, com todos os detalhes e reviravoltas colocados de maneira cirúrgica. Robinson é sempre grande, e Bennett não está caricata como no filme seguinte. Dan Duryea é sempre ruim, mas, ainda bem aparece pouco dessa vez.

Uma pena, portanto, que o filme não acabe um minuto antes do desfecho definitivo e ridículo: há o final perfeito, pessimista, irônico e à prova de justiça, fade, e entra um remendo providenciado às pressas, devido a pressões do estúdio pelo respeito ao Código Hays, que regia as ideias sobre os bons costumes nos filmes americanos.

Passos na Noite, de Otto Preminger: noir bem razoável de Preminger, com o mesmo casal do diabólico Laura, Dana Andrews e Gene Tierney. Algumas cenas de puro engenho, um belo começo e um todo ok, mas os noirs são mais fascinantes quando estamos colados em protagonistas mais ambíguos. Apesar da violência dos seus métodos, Andrews é apenas um mocinho durão e Tierney não passa de interesse amoroso, sem as camadas de veneno já vistas em outros filmes.

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Filmes do exílio #1

Há uma beleza embriagante em Alma em Pânico, film noir famoso e bem atípico de Otto Preminger. O efeito de envolvimento começa na trilha de Dimitri Tiomkin, tocada já nos créditos e repetida ao longo da projeção por Jean Simmons, ao piano, em algumas sequências-chave do filme. É uma partitura langorosamente hitchcockiana, que poderia muito bem pontuar os dois primeiros atos de Um Corpo Que Cai, quando James Stewart é enredado por Kim Novak.

Alma em Pânico também fala sobre amor, obsessão e assassinato à maneira hitchcockiana, longe da história policial. Sua vinculação com o noir talvez se deva mais à iluminação p&b e o currículo do diretor, autor do megahit Laura e outros exemplares do estilo. Por dentro, faltam ao filme vulgaridade e brutalidade para que os diálogos pareçam "sair do asfalto". Estamos na verdade diante de um lancinante melodrama com toques policiais, como A Carta, de William Wyler.

A sinopse bruta dá conta de que Diane Tremayne, filha única de um escritor de sucesso e órfã de mãe, detesta a madrasta. Ela se apaixona pelo motorista de ambulância que vem a sua casa quando a madrasta quase é intoxicada com gás, no que pode ser um simples acidente ou uma tentativa de assassinato.



Diane seduz Frank, o motorista (Robert Mitchum, no auge de sua presença como leading man), e o convence a trabalhar para a família dela. Ele não vira o pato habitual do noir, não comete nenhum assassinato, e é safo o suficiente para deixar isso claro para Diane, mas acha que pode conseguir tirar as ideias malucas da cabeça dela se os dois fugirem.

O que acontece daí em diante é melhor deixar para o eventual espectador dessa joia clássica, infelizmente não tão famosa quanto deveria ser. Provavelmente esses desdobramentos de roteiro nem são tão importantes, mas há um frescor em ver esse filme sem saber muito bem para onde ele vai, e apreciar como Preminger vai conduzindo lindamente esse jogo de erros. Há uma inequívoca e hoje raríssima elegância em cada cena, um desfile de excesso controlado numa trama que só poderia passar no meio de gente rica.

Jean Simmons, atriz que oscila bruscamente entre o irritante (Hamlet) e o maravilhoso (Entre Deus e o Pecado), desconcerta, com um dos personagens mais complicados já vistos no cinema clássico: uma femme fatale perigosa mas sem malícia, assassina por desequilíbrio e não por vocação ou esporte, e, ainda assim, bem longe de ser louca; é instável, e com não raros momentos de afetuosidade e bom caráter. A atriz é o ponto de apoio de um filme verdadeiramente fascinante, dono de um perfeito ponto final.

Outros filmes do exílio:

Desejo Humano, de Fritz Lang - Noir verdadeiro e forte, mas, como remake de A Besta Humana, de Jean Renoir, acaba suprimindo parte da melancolia reinante no longa do mestre. O final e o protagonista poupado do banho de sangue me parecem concessões a Hollywood, coisa que o diretor francês não enfrentou. Glenn Ford, aliás, não sobrevive a um suspiro de Jean Gabin, mas Gloria Grahame dá o show habitual.

A Dama Fantasma, de Robert Siodmak - Assim como Silêncio nas Trevas, esse outro noir de Siodmak não convencem muito. Parece filme de imitadores dos grandes mestres, emulando a iluminação, com sem os abismos humanos que caracterizaram o estilo. Bem fraco.



Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia - Obra-prima do cinema nacional, infelizmente inédita em DVD e disponível apenas em VHSRIP escusos como o que eu vi. Mas não faz mal. Mesmo longe de suas condições ideais de exibição, esse filme de Babenco entra de sola no regime militar em plenos anos 70, com a desculpa de um filme policial. Não há nada glamourizante, e o filme é seco e brutal como deve ser uma cinematografia que queira se engajar politicamente, sem, no entanto, se transformar em panfleto. Primor de tensão e coragem: não há fuga da violência, e as cenas de tortura são inacreditáveis, sem os riscos de má interpretação de Tropa de Elite. O desagradável é desagradável mesmo, sem retoques ou popices. Reginaldo Faria, mais uma vez, é espetacular.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Suburbia malaise e muito mais

Fui pela primeira vez ao cinema desde que me mudei para Luanda, Angola, e peguei duas sessões no multiplex local, o Cineplace Angola - aliás, dos mesmos donos de vários cinemas de shopping de Salvador, como o Iguatemi, Barra e Itaigara. Pois bem: já que vínhamos falando de Kate Winslet, comecemos por Revolutionary Road, dirigido pelo marido da atriz, Sam Mendes. O filme marca um retorno do cineasta ao tema da angústia suburbana americana, visto em seu primeiro longa, Beleza Americana, inacreditavelmente vencedor de cinco Oscars - somente merecia ator (o grande, genial, Kevin Spacey) e fotografia (de Conrad L. Hall).

O casal Wheeler, principais personagens do filme novo, chegou ao mesmo ponto de crise dos Burnham de American Beauty: rotina confortável com casa & filhos versus atração por uma vida nova e cheia de descobertas; enfim, estabilidade contra mudança. Se no primeiro filme Spacey decidia fazer o que queria a qualquer custo, mesmo deixando a mulher para trás (e sendo punido de maneira grotesca pelo final conservador), em Revolutionary Road ainda há amor, e DiCaprio e Winslet têm que decidir juntos o que farão com sua insatisfação.




Uma grande pena, portanto, que mesmo com uma premissa forte, Mendes resolva todos esses conflitos em longas cenas de brigas de casal, marcadas pela gritaria e veias estufadas no pescoço de seus atores. Pior: não há nesses diálogos furiosos qualquer grau de elaboração acima do mero clichê (isso não é Quem tem Medo de Virginia Woolf?, ou Maridos e Esposas), mesmo que, dessa vez, estejamos livres da desonestidade humana de Beleza Americana. Os personagens existem, no melhor sentido, mesmo que o filme só os registre nesses momentos de explosão, sem os alicerces adequados para fazer com que tanta angústia pareça real.

Talvez por isso, mesmo atores experimentados como DiCaprio e Winslet não tenham muito o que fazer, exceto em cenas isoladas e mais calmas. Ela, especialmente, vai se regulando e baixando a bola aos poucos, até chegar muito bem às cenas finais. Ainda assim, não alcança a performance superlativa de Pecados Íntimos, onde interpretou personagem semelhante. Aliás, nem Revolutionary Road passa perto do filme de Todd Field, que tinha seus problemas no final, mas dominava muito bem a noção de cotidiano em seus pequenos infernos, sem reduzir tudo às quebras de pratos e ao chororô.

Sobre Mendes, acho que ele deve ser o melhor diretor de segunda unidade de todos os tempos. Faz cenas isoladas muito belas, mas seus filmes são todos Frankenstein, indefinidos ou repulsivos - no pior sentido, sem ambiguidades ou radicalismos. Gostar mesmo, só gosto de Estrada para Perdição, onde há tantas sequências notáveis (o desfecho na chuva, a morte da família de Hanks, um assassinato revelado no espelho, Jude Law fotografando um cadáver) que o filme acaba sobrevivendo, apesar do gosto de moralismo que fica na boca.

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Acho que há exageros por parte dos defensores e dos detratores de O Curioso Caso de Benjamin Button, de David Fincher. Quem é a favor do filme, como Merten (link na barra do lado ->), levanta a visão do filme sobre a vida, e a afirmação retirada de Bergman no final de Gritos e Sussurros de que a vida vale a pena, mesmo que seja por um segundo.

O próprio Merten, aliás, viu em entrevista que Fincher disse querer fazer um filme à Minnelli, e a memória vai direto para o maravilhoso e triste musical A Lenda dos Beijos Perdidos, em que Gene Kelly e Cyd Charisse não podem se amar porque estão separados 200 anos no tempo. Benjamin Button não pode amar sua Daisy porque vive ao contrário, ficando com o corpo mais jovem à medida que envelhece.




Em vários momentos, o filme consegue mesmo conjurar esse tipo de melancolia pessimista, mas a comparação com os clássicos só o enfraquece. Suas duas horas e meia parecem longas e intermináveis para uma ideia muito repetida e expressa com o máximo de potência em 90 minutos. Não é um filme conciso, e seu epicismo parece autoindulgente, fora de foco, sem sentido. O final, então, é de um horror absoluto, e mostra como uma boa ideia (a de Bergman) pode ser destruída por um tratamento imaturo. A vida vale mesmo a pena, mas não é preciso dizer isso como se o filme fosse anúncio do Itaú.

Por outro lado, o filme está bem longe de ser o pior prato já apresentado na refeição anual do Oscar. Tem seus momentos realmente muito bons (toda a participação de Tilda Swinton na Rússia), ao contrário de porcarias completas como Juno, Uma Mente Brilhante ou As Horas.

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Vi uns 30 minutos de Ocean's Eleven na tevê. Perfeito, sensacional, completamente embriagante com seu humor absurdo e ainda assim discreto.

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Também na tevê, vejo a reprise de O Cravo a Rosa na Globo Internacional. Nunca vi uma novela tão impecável e regular, com todas as cenas e atores não apenas corretos, mas muito inspirados. Poderia citar todos, mas fico com Drica de Moraes, a espirituosa vilã Marcela. Destaco também outro ator porque me era desconhecido quando vi a novela e parece não ter feito nada depois: Matheus Petinacci, o Doutor Teodoro. Por onde anda?

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O grande crítico Moniz Vianna morreu. Todo mundo relembra essa entrevista recente a Evaldo Mocarzel, mas vou linkar aqui também. Para interessados em cinema clássico, vale comprar a compilação recente de suas críticas feita por Ruy Castro. Moniz Vianna parou de escrever no início dos anos 70, quando John Ford morreu.