quarta-feira, julho 22, 2009

Argentina, Uruguai

Quem são meus diretores favoritos hoje? Acho que essa lista com certeza teria Michael Mann (Miami Vice, Colateral, Fogo Contra Fogo), Wong Kar-Wai (Amor à Flor da Pele, 2046, Felizes Juntos), e Clint Eastwood (dã), etc, etc. A lista é longa, mas dentro desse grupo há com certeza espaço para a obra do argentino Daniel Burman, um cara que normalmente não entraria em listas de consenso, mas que, para mim, é praticamente um herói. Se eu fosse cineasta queria fazer filmes iguais aos dele.

Burman tem um cinema discreto e fluido, mas me parece ser o homem que melhor escreve hoje, junto com Desplechin. Faz filmes quase verbosos, super-escritos, e já foi comparado a Woody Allen, mas há uma leveza impressa em cada frase e desdobramento de trama que me parece jogar por terra essas críticas. Estamos dentro da mente de alguém bem próximo, capa de pensar e se expressar rápido, mas não há nada aqui da chatíssima vontade de ser irônico/pós-moderno de fraudes como Diablo Cody e Charlie Kaufman. Burman é lindamente livre de sarcasmo.

Seu coração aberto e excelente olho para gente fazem também com que seus filmes não sejam apenas peças engendradas com inteligência narrativa à antiga. Nessas comédias falsamente peso-pena de classe média, verdades pontiagudas aqui e ali que sugerem uma melancolia muito bem lograda, perfeitamente inserida no cotidiano e sem qualquer lance de dramalhão, mesmo com histórias de reconciliação familiar.



Pois bem, eu não vi os primeiros longas dele, mas me apaixonei completamente por Abraço Partido, e talvez mais ainda por As Leis de Família, dois filmes estrelados por um xará do diretor, o uruguaio Daniel Hendler, em papeis parecidos de jovem hesitante, judeus como o cineasta, ambos chamados Ariel. Vi esses dias por aqui Ninho Vazio, outro prazer imenso de cinema e texto, com uma acenada para o fantástico.

Começa com uma cena maravilhosa, jantar de amigos intelectuais, e vem outra e mais uma, e uma terceira cena incrível, e assim sucessivamente. Estruturalmente, no entanto, há alguma obviedade nas tentativas de metalinguagem, e por melhor que seja a empatia criada com o protagonista-escritor-turrão, Burman é ainda melhor quando escreve sobre pessoas de sua geração, mais jovens. Conflitos parecem mais acertados, sem arestas. Mas, por esses vários momentos soltos de pura graça, uma sessão de encanto, sim.

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Bem mais redondo, embora de uma frieza quase glacial é o incrível Aura, do também argentino Fabian Bielinsky, o mesmo diretor de Nove Rainhas, morto prematuramente por um ataque cardíaco. Filme de gênero com gosto, noir de simbolismos não-estensivos, protagonizado por um taxidermista epilético. É o tipo de coisa que não fazemos do lado de cá da fronteira, a mesma releitura do policial de erros hollywoodiano tão consagrada pelos irmãos Coen em toda a sua obra. Gélido, violento, atmosférico e completamente seco em sua narrativa, Aura se sustenta muito bem na comparação com a obra dos diretores americanos.

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Do outro lado do Rio da Prata, dois filmes também muito bons. 25 Watts, longa de estreia da dupla Juan Pedro Rebella e Pablo Stoll (mais tarde fariam o genial Whisky; o duo acabou com o suicídio de Rebella), mostra um dia de tédio de três amigos de classe média em Montevidéu de maneira muito espirituosa. Feito na guerrilha com 200 mil dólares, o filme se livra muito bem de suas limitações financeiras e as converte em mérito.

Câmeras fixas, apartamentos de verdade, p&b meio sujo - tudo isso se vira a favor do filme e de sua modorra. Não há aqui aqueles climões asiáticos, e sim um humor bem masculino, mas discreto, que sempre surge quando um grupo de homens jovens não sabe muito o que fazer da vida. Cheguei até desconfiar de uma influência de Cassavetes, mas o lance aqui é mais cômico mesmo, e um agradecimento nos créditos a Jim Jarmusch esclarece mais as coisas. Podia até ser um curta, mas um colega de trabalho uruguaio já me disse que a alma do país é a repetição - por isso o filme se resolve tão bem em sua hora e meia. Eles dominam esse vazio.

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O outro filme uruguaio é O Banheiro do Papa, de Enrique Fernández e César Charlone, este último o consagrado fotógrafo de Fernando Meirelles. Bonito também, numa daquelas histórias de cinema iraniano: cidadezinha do interior se mobiliza para vender comidas durante a visita de João Paulo II, em 88. O protagonista resolve construir um banheiro para atender as necessidades do grande grupo de romeiros esperado. A comparação com o cinema iraniano vai além da história: temos de volta aquela grande sensação de naturalidade, em casas autênticas, atores com caras reais e um bom humor e amor à vida invejáveis. Dá até uma saudade de Jafar Panahi.

sábado, julho 04, 2009

Salvação da lavoura

Ainda não vi Serras da Desordem - o filme mais amplamente reconhecido como o melhor brasileiro dos últimos tempos - mas, mesmo com esta falta, aponto aqui a minha preferida entre as produções nacionais. A Casa de Alice, que vi aqui no exílio, no laptop, tem um nível de lucidez ao tratar com o elemento "gente" que me parece completamente inédito no que temos feito, mesmo com pontos altos como O Céu de Suely ou Cinema, Aspirinas e Urubus.



A Casa de Alice supera esses filmes porque não precisa correr atrás de uma humanidade distante do público e do próprio diretor em algum ponto isolado do sertão nordestino ou numa favela carioca. Chico Teixeira dá um 180° e filma um cenário muito mais reconhecível: é a classe média em seus pequenos infernos, dentro de uma cidade grande. Não é um filme sobre "o outro", graças a Deus. Tirando Domingos de Oliveira, até que enfim alguém resolveu fazer um filme sobre um mundo que conhece.

Beneficiado por este conhecimento, Teixeira alcança nível de excelência que me lembra alguns filmes argentinos contemporâneos, como O Pântano, ou Família Rodante. Não deixa de ser curioso que os argentinos façam esse tipo de coisa com o pé nas costas, e nós só agora alcancemos esse patamar. A Casa de Alice não apenas tem verdade - coisa que já havia em outros bons filmes brasileiros recentes -, mas também provoca identificação.

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Um nível abaixo está a beleza de Mutum, que a ultraurbana Sandra Kogut logroua partir daquele lindíssimo Campo Geral, de Guimarães Rosa, que li em 2002 pro vestibular da Unicamp. O filme funciona em dois níveis. Primeiro, tem a bola bem baixa, sem que sua simplicidade pareça em nenhum momento um artifício artístico, um falseamento da vontade de filmar no "arte" mode. Mutum tem a dimensão que devia ter e pronto.

Em segundo, consegue atualizar muito bem Rosa, mesmo fugindo de suas armadilhas de linguagem. O cheiro da terra e da gente é o mesmo, chega intacto. O andamento, o ritmo, a o tempo próprio do autor são maravilhosamente traduzidos pela montagem discreta e eficiente. Um prazer.

PS: Desejo e Perigo em cartaz em Salvador. Junto com Gran Torino e Entre os Muros da Escola, forma a atual trinca de filmes do ano. Imperdível.