quarta-feira, janeiro 20, 2010

O dia de Fellini. E de Lynch

Não acredito em destino, etc, mas não deixa de ser curioso ter visto um vídeo no YouTube em que Momentum, de Aimee Mann, ganha uma montagem sobre imagens de 8 1/2 e horas depois descobrir que Fellini completaria 90 anos hoje.

Acho que o primeiro Fellini que vi foi Amarcord, num VHS locado na VideoHobby da Graça, há praticamente dez anos. Óbvio, na época o filme só me causou estranhamento, e eu precisei de pelo menos mais cinco anos para descobri-lo por inteiro, como se deve, numa sala de cinema - no caso, a Walter da Silveira.



Poucas vezes chorei tanto num filme. Chorava em cenas aleatórias, por qualquer coisa, até em sequências que deveriam ser cômicas, como a do garoto que se aproxima da boazuda Gradiska numa sala de cinema.

O motivo é fácil de decifrar - Amarcord, eu me lembro, é o filme mais nostálgico já feito, bêbado de memórias falsas e verdadeiras, e, por consequência, é um épico sobre o tempo. As pessoas, as situações e as coisas passam e não há volta. Não há nada mais triste do que isso, afinal, mesmo quando as lembranças são as mais alegres.

Em Amarcord a gente chora e ri, ao mesmo tempo e sem parar. É o filme mais catártico de Fellini, porque a memória é sua única preocupação. Ele foi mais ambicioso e intelectual - e melhor, mesmo - em A Doce Vida e 8 1/2, e talvez mais focado e preciso em coisas como A Estrada da Vida e Noites de Cabíria, mas meu coração fica mesmo com o caos e a desorganização deslumbrantes de Amarcord.

*

Hoje também é aniversário de David Lynch, que acaba de ter seu Mulholland Drive celebrado por meio mundo (Cahiers, inclusive) como o melhor filme da década. É um filme potente, mas essa fase de entrega total ao absurdo, continuada com Império dos Sonhos, sinceramente não me diz muita coisa.

Lynch já era radical sem precisar mergulhar na abstração absoluta, acho, e mesmo seus saltos sem rede pareciam mais interessantes nas décadas de 80 e 90. Não há nada em seus filmes recentes que não me pareça mais bem desenvolvido e perturbador em A Estrada Perdida, praticamente sua obra-prima, não fossem História Real e Coração Selvagem.



Fãs radicais do autor em geral ficam com as obras mais novas ou Veludo Azul, mas tenho a tendência a admirar o modo como sentimentos estranhamente bons acabam se misturando no mundo de horror de Lynch.

Em História Real, nada me desconcerta como o olhar dos dois homens velhos que reconhecem, um no rosto do outro, a participação na Segunda Guerra. A mesma generosidade explode ainda mais em Coração Selvagem, em que um grande amor vence todas as batalhas contra o horror, a violência e o absurdo. E com "Love Me Tender" no final.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

Os injustiçados + Avatar

Lista é sempre aquela coisa. A gente faz somente para se arrepender logo depois. Não vou alterar o Saymon Awards, mas, além do pesar pelo monte de coisa que eu não vi, não posso deixar de registrar o arrependimento por nem ter considerado na hora de fazer a lista duas coisas de que gostei muito ano passado.

A primeira é o deslumbrante Deixa Ela Entrar, um filme que atualiza toda a mitologia vampiresca para um corte impecavelmente nórdico, tanto no seu ritmo muito mais lento e calculado, quanto na delicadeza com que esse cinema costuma tratar os sentimentos, mesmo os mais sutis. Quase 20 anos depois, não tem como negar em Deixa Ela Entrar o DNA da obra-prima Minha Vida de Cachorro nesse relato dos ritos de passagem da infância à adolescência.

>>> O outro filme é menos popular, mas é igualmente convicto e apaixonado por seu ponto de vista de cinema, um ponto de vista que privilegia a forma, o espetáculo, a grande narrativa hollywoodiana em sua versão mais opulenta. Em Austrália, depois de três filmes sensacionais margeando as popices contemporâneas filtradas por todas as mídias e artes ao mesmo tempo, Baz Luhrmann firmou o foco no cinema e pôs pra fora deliberadamente seu repertório histórico numa tirada de chapéu ao glorious technicolor, breath-taking cinemascope & stereophonic sound.



É um filme que tem martelado minha cabeça - só sumiu na hora da lista - e o que tinha a dizer sobre ele foi mais ou menos cuspido numa discussão no orkut, onde postei os três parágrafos a seguir. Como não vou conseguir me articular melhor, reposto aqui:

"Sempre associei o cinema dele a uma coisa quase circense de conseguir se equilibrar mesmo em altíssima velocidade, não só em sua formatação cinematográfica, câmera, edição, clip, mas também à capacidade inflar o banal e o superficial rumo a uma estarração dessa superficialidade.

"Tem uma frase do Inácio na crítica de Maria Antonieta que passou a me perseguir quando eu penso em Baz Luhrmann. Inácio adora o filme, mas reclama que Kirsten Dunst não é superficial o suficiente para a personagem, e é assim que eu penso em Luhrmann, tendo atingido esse grau de superficialidade suficiente para que seus filmes sejam balões de gás ultraimpactantes.

"E o curioso é que este impacto acaba por comentar a superficialidade de que deveria fazer parte, mas não faz, justamente pela inteligência de sua metalinguagem. Nada solene, aliás, mas agressiva, uma autofagia doida do cinema sobre o cinema que tem um par menos nervoso e mais elegante em Brian de Palma".

Enfim, ele continua filmando com uma fome incrível de imagem, tirando grandes cenas a partir de um roteiro que é um praticamente um nada, mas um nada que pede pra ser filmado em grande escala. Pode-se usar essa ideia justamente para criticá-lo – glorificação do vazio, entronização do pastel de vento –, mas acho que o sentido da avaliação é contrário. A manipulação da forma torna o cinema tema de si mesmo e revela mais uma vez um diretor ciente de seu poder ao conduzir a relação das pessoas com a mentira, a fantasia e a arte.

Mesmo tendo renegado o filme, chama a atenção a preciosa atuação de Nicole Kidman, atriz que não tem medo de fazer a southern belle texana com sotaque britânico, à moda de Vivien Leigh. Faz tempo que ela, quase sempre formidável, não aparecia na tela com tanto vigor, consciente do poder de seu megaestrelato e da função deste em um filme tão empenhadamente fake.

Depois de suas exaustivas três horas – as melhores três horas que Hollywood nos proporciona desde o maravilhoso King Kong de Peter Jackson – resta a pergunta: e agora, Baz Luhrmann? Sua carreira ficou num enigma, e seus veios parecem esgotados pela própria energia aplicada em cada um de seus filmes: poderá ele voltar ao musical depois de Moulin Rouge? Seu pós-modernismo não já era passé desde Romeu + Julieta? Como poderá filmar em Hollywood mode após Austrália? Esperamos que a resolução deste impasse não seja a repetição, mas outra tomada de risco.

>>> Também em três horas de delírio hollywoodiano, aproveito pra mencionar o desbunde do Avatar de James Cameron. O filme é super, mais uma prova do imenso talento de Cameron a conduzir ação/aventura, talento inabalado mesmo com férias de dez anos desde Titanic - por sinal, um excelente thriller.



Se o lado montanha russa é de ficar embasbacado - a maioria absoluta dos blockbusters aventurescos me causa um tédio infernal -, essa história de futuro do cinema é forçação. Não adianta ter a tecnologia de ponta mais desgraçada do mundo que isso não significa nada diante de uma narrativa que é quase Errol Flynn, um capa e espada dos anos 30 mais bem equipado, e pronto.

Nada contra isso, aliás, super a favor, mas, futuro, futuro mesmo, tá muito mais nas Ervas Daninhas de Resnais. Tá ali uma sessão à prova de naftalina.

terça-feira, janeiro 05, 2010

Saymon Awards 2010

Se nos anos anteriores eu já cometia falhas indesculpáveis perdendo filmes essenciais, em 2009, com a mudança para Angola, as coisas pioraram ainda mais. A lista a seguir contempla, como sempre, o calendário de estreias de Salvador, o que implica a presença de filmes já vistos em 2008 em outras plagas, e, claro, a ausência de muita coisa que não saiu do circuito RJ-SP. Não que eu fosse conseguir ver tanta coisa como Filipe Furtado, por exemplo, mas... Deixemos de justificativas:

10 - A Bela Junie, de Christophe Honoré - Honoré continua amando a nouvelle vague, mas virou a chave pro Trufô de As Duas Inglesas e o Amor. Literário e ultra moderno.

9 - Entre os Muros da Escola, de Laurent Cantet - Quem diria, hoje em dia, um choque de realidade! Ou a realidade em choque.

8 - Juventude, de Domingos Oliveira - O melhor filme de Domingos desde Separações. Parou de projetar sentimentos nas mulheres e filmou em primeira pessoa.

7 - Gran Torino, de Clint Eastwood - Clint aprende o que é sacrifício e para dentro de um caixão. É aqui que ele olha para o "outro" com generosidade, e não em Cartas de Iwo Jima, onde dobra o estrangeiro a sua visão de mundo americana.

6 - Amantes, de James Gray - O amor dói mais para os hipersensíveis. Converte os descrentes em James Gray.

5 - UP - Altas Aventuras, de Pete Docter - Lirismo delicadíssimo, narrativa clássica econômica e precisa. A palavra é quase desnecessária.

4 - Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino - Ao contrário de seus filmes anteriores, Bastardos Inglórios é humanamente vazio, mas a paixão pelo cinema como tema absoluto nunca o torna estéril. Lembra muito o Brian De Palma da fase Hitchcock.

3 - Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin - Difícil, excessivo, atropelado e muito irregular. Tanta gordura não impede que esse seja o filme mais apaixonado por gente do ano. Os melhores atores do mundo.

2 - Desejo e Perigo, de Ang Lee - Ang Lee nunca tão suntuoso. Ang Lee nunca tão minimalista. Filme tem a classe sufocante dos grandes mestres do épico, como o Coppola de O Poderoso Chefão II. Mesmo tom. Gigantesco e discreto, lento e explosivo.

... E o grande Saymon Awards vai para:



1 - Ervas Daninhas, de Alain Resnais - Resnais e os desequilíbrios do amor, aliás, metaforizados de maneira espetacular num desfecho de entrar para a história, dentro de um avião. Rara leveza para filmar os intempestivos atos de amor. A nouvelle vague não morreu, afinal.

Cinco atores:



1 - Gregoire Leprince-Ringuet, A Bela Junie
2 - Aderbal Freire Filho, Juventude
3 - Mathieu Amalric, Um Conto de Natal
4 - Christoph Waltz, Bastardos Inglórios
5 - Joaquin Phoenix, Amantes

Cinco atrizes:



1 - Meryl Streep, Dúvida
2 - Marion Cotillard, Inimigos Públicos
3 - Kate Winslet, Foi Apenas um Sonho
4 - Penélope Cruz, Abraços Partidos
5 - Catherine Deneuve, Um Conto de Natal

Dez melhores filmes que vi pela primeira vez esse ano, de qualquer época:



1 - A Tortura do Medo, de Michael Powell (GBR, 1960)
2 - As Duas Faces da Felicidade, de Agnes Varda (FRA, 1965)
3 - Lúcio Flávio - O Passageiro da Agonia, de Hector Babenco (BRA, 1977)
4 - O Segredo Íntimo de Lola, de Jacques Demy (EUA, 1969)
5 - Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, de Mikio Naruse (JAP, 1960)
6 - Desejo Profano, de Shohei Imamura (JAP, 1964)
7 - Entre Dois Fogos, de Anthony Mann (EUA, 1948)
8 - O Enforcamento, de Nagisa Oshima (JAP, 1968)
9 - Juste Avant La Nuit, de Claude Chabrol (FRA, 1971)
10 - Morrer de Amor, de Alain Resnais (FRA, 1984)

Saymon Awards 2009

Saymon Awards 2008