quinta-feira, outubro 04, 2012

A Vida de Pi





Tem mais ou menos um ano que eu li A Vida de Pi e são raros os dias em que o livro não volte pra me atormentar um pouco, e parece que agora mais ainda, com a adaptação de Ang Lee chegando aos cinemas nos próximos meses e muitas pessoas voltando ao livro, ao que ele é e ao que tenta dizer.


"Tentar dizer" é uma coisa importante aqui, já que o livro é construído como parábola: uma fábula para chegar a uma moral. Temos uma história de aventura narrada com tintas fantásticas e um epílogo que reajusta tudo escrito anteriormente, como no Reparação, de Ian McEwan.

Pi Patel, o protagonista, é um adolescente criado no zoológico do pai, fascinado pela natureza, mas completamente fisgável por religiões. Ele se interessa e envereda ao mesmo tempo pelo hinduísmo, pelo cristianismo e pelo islamismo, para estranhamento da família ("meu pai era secular como um sorvete").

Uma virada do livro põe Pi e um tigre sozinhos num barco salva-vidas, à deriva, após o naufrágio do navio que levava a família Patel e os animais do zoológico rumo ao Canadá. São 200 e poucos dias no mar, não desprovidos de eventos espetaculares primorosamente narrados. Como alguém já escreveu, é como se Edgar Allan Poe houvesse escrito o livro de Jó.

Depois dessa aventura chega o polêmico epílogo, enfim, uma marreta de realidade sobre op relato fantástico visto anteriormente. Há quem descreva esse final como artificial, tirado da cartola, decepcionante, mas é ele quem projeta essa "moral" a algo bem mais profundo e fascinante do que o antevisto no preocupante e arriscadíssimo primeiro capítulo, que promete: "Este é um livro que te fará acreditar em Deus". 

No entanto, quando o livro se reconstrói, estamos diante de uma falsa promessa. Não há qualquer certeza da existência de um Deus além da própria escolha de se acreditar Nele. O ponto aqui, dentro de um zeitgeist completamente materialista, é que o livro parece simpático a essa escolha teísta e manifesta um entendimento de que a busca de qualquer transcendência é pessoal: cada um acredita no que lhe faz bem, fortalece, e dá força para sobreviver. É assim que aquela jornada num barco transforma-se numa vida inteira, em qualquer vida.

Mais além, ao imbuir a crença de uma responsabilidade (acredita-se porque quer) e ao abraçar todas as possibilidades de "espiritualização", Martel purifica a religião dos dogmas que as fazem atuar umas contras as outras e contra as próprias pessoas que nelas procuram refúgio. Com responsabilidade, castigos e salvação não têm sentido.

O que passa a importar não é restrição específica, mas a interseção de ideias - o amor, a celebração da existência e a gratidão por estar vivo -, algo que pode afetar mesmo ateus e agnósticos afeitos a essa sensibilidade universalista. A responsabilidade, no entanto, impede a relativização. Cada um sabe o que faz e até onde vai e até onde segue um caminho que contradiga esses princípios gerais.

A relação religiosa é corrigida: deixa de ser uma adesão por osmose e passar a ser uma busca ativa, voluntária, algo primal, nos modelos dos primeiros homens que buscavam respostas não para obedecer a regras antepassadas, mas pela busca em si.

No fundo, o que Martel (entre garçom e segurança, uma de suas ocupações foi ter estudado filosofia em Ontario - ele é canadense) faz com a alegoria da vida de Pi é apresentar uma alternativa, uma possibilidade de conciliação e de reposicionamento da crença para o século 21.

O truque de gênio, no entanto, é não ceder à auto-ajuda nem oferecer conforto fácil a partir dessa possibilidade: a construção aparente da vida com uma presença divina, no livro, não deu um passo sequer além da ficção. Deus continua a ser impasse: quão real é uma felicidade construída que se sente como real?

Depende da força dessa construção. Daí a força do livro. Mais do que uma meditação teológica, ele é uma afirmação da poder sem limites do storytelling. De volta ao citado Reparação, de McEwan, a ficção às vezes é o único instrumento de redenção que se tem à mão.

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