terça-feira, novembro 12, 2013

Não sou artista

Algumas vezes na vida pessoas que gostam do que eu escrevo sobre cinema, perguntaram-me: “Mas porque você não faz filmes também?”. É um questionamento compreensível, que encerra a ideia de que a observação não pode ser um fim em si, e sempre encerra uma ausência, a prática. Em geral eu desconverso, mas na verdade eu gostaria sim de ser um artista, mas reconheço em mim, além da falta de talento/experiência/habilidade/bagagem, um problema-chave que me impede de tentar este passo: sou uma pessoa extremamente otimista. 

Pode parecer radical, mas não acredito muito numa arte da alegria, ao menos nas artes narrativas (o cinema, o teatro, em certa medida a pintura) e na literatura. Uma arte relevante envolve sim um estado de espírito capaz de lidar de frente com tudo o que há de difícil na vida. Não pode ser confortável, conformada, ou, para usar uma palavra da qual não gosto muito, alienada. A arte é mais potente quanto mais for um reflexo da nossa relação com as dores do mundo. Não adianta fazer arte que não dói, que busca empurrar goela abaixo do leitor (no sentido amplo da coisa) uma doçura irrefletida. 

Não se trata, por outro lado, de fazer uma restrição boba e reservar os ofícios narrativos aos tristes, céticos e desenganados. Como viver sem o prazer de ver uma comédia romântica dos anos 40? A minha teoria, no entanto, é de que os grandes artistas do escapismo não estão deixando de encarar as coisas más da vida, e sim se posicionando contra elas. Não me lembro onde li isso, e nem lembro se foi sobre Vincente Minnelli ou Jacques Demy (ambos artistas do musical e da comédia, em filmes cheios de cores vivas e música doce), mas a ideia é que os filmes escapistas deles são uma reação à dureza do mundo na medida em que eles reconstroem o mundo como ele deveria ser. Nunca li essa ideia em conceito, mas se pudesse dar um nome a isso, seria o de “nostalgia da perfeição”. 

Obviamente, para chegar a esse estágio, não basta apenas decidir ignorar o lado ruim da vida e espalhar uma ideia de “muito amor”, como se a arte fosse uma foto do Instagram, onde basta escolher o filtro certo para projetar o clima que se quer, geralmente algo entre a alegria boba e uma falsa melancolia vintage. É preciso bem mais que isso: a arte requer acima de tudo reflexão, e a nulidade do que se vê e lê por aí indica que estamos nos contentando com muito pouco. Não adianta filmar ou escrever se o olhar de quem prestigia a sua arte continuar no mesmo lugar.

Eu me considero uma pessoa prática e pragmática, e me falta disposição e mesmo essa característica inata de remoer a vida para regurgitá-la em arte. Eu sempre sigo em frente, achando que vai dar tudo certo o tempo todo. Em geral, eu não penso na parte ruim das coisas, embora saiba que elas existam. Enfim, não consigo me atormentar o suficiente, e só consigo aprofundar o pensamento quando motivado pela arte alheia, ou seja, sou um espectador por essência. Tem muita gente dizendo muita coisa, e se for para ser mais uma voz banal, acho que é melhor ficar calado e apreciar o trabalho de quem tem o talento para isso.

sexta-feira, outubro 18, 2013

Gravidade

Muito perspicaz essa ideia de (logo quem) Alexander Payne sobre Gravidade: "Sandra Bullock numa casa mal-assombrada". O filme é exatamente isso, um exercício superbásico e tecnicamente impecável de movimento, um trem fantasma, uma correria pra lá e pra cá pra salvar a vida, um Tom & Jerry em que o perseguidor é o limite do oxigênio. Enfim, é uma montanha russa, e diz muito sobre o nosso tempo que um filme com as ambições de um parque temático receba os tipos de elogio que têm sido atirados na sua direção. Eu gostei do filme, mas ele é muito bom não por uma suposta profundidade e sim por ser mais um elemento continuador numa linhagem que vai de A General a Encurralado, com as devidas proporções guardadas, obviamente.

terça-feira, outubro 08, 2013

The Bling Ring

Filipe Furtado escreveu um texto na Cinética relacionando Sem Dor, Nem Ganho, de Michael Bay, e The Bling Ring, de Sofia Coppola, que eu pessoalmente acho um dos melhores filmes do ano. Para Furtado, a carreira da Coppola está cada vez menos interessante, e isso seria consequência de uma imobilidade autoral, de um estar à vontade em filmar o que sabe de um ponto de vista já estabelecido e mapeado, ponto de vista este que a diretora sabe que vende bem.

Eu tenho a impressão contrária: acho que a depuração (que Furtado bem nota) dramatúrgica progressiva em sua carreira tem transformado o seu cinema em algo bem diferente do que era antes, e acho que The Bling Ring é um ápice de distanciamento. Jogar para a plateia, no caso dela, seria continuar adoçando a melancolia dos seus primeiros filmes, com aquela preguiça meio Wes Anderson, mas eu vejo a Coppola se afastando disso. Para mim, não procede essa identificação do deslumbramento dela e dos personagens do filme. Aliás, a secura com que ela filma beira a misantropia, mas, felizmente, está a centímetros da linha que define a humanidade de seus adolescentes, só que do lado certo.

Também me chama a atenção como ela parece romper essas linhas que presumimos biográficas entre os seus protagonistas anteriores e si mesma, algo que chamava atenção em todos os filmes: algo do isolamento e do privilégio, sim, mas da sensibilidade e do tédio, podia traçar uma linha bem clara entre a diretora e aspectos das personagens dos seus quatro primeiros filmes, o que não me parece o caso agora.

Por mais que habitem o mesmo universo, Sofia e o Bling Ring são seres bem diversos de um mesmo universo, e isso pra mim é um claro movimento autoral, em oposição a essa suposta imobilidade: Sofia está filmando os outros, e seu olhar me parece muito bem estudado e calculado, no bom sentido da palavra. Ela sabe se posicionar e definir pessoas, locais, presenças, comportamentos, sem que pareça ter um investimento pessoal mas com um registro completamente seu. Ela me parece pronta pra se mover mais ainda para longe de sua "zona de conforto", e não acomodada. Nem Air toca mais (toca?), vejam só.

quinta-feira, outubro 03, 2013

Antes da Meia-Noite

Filme desagradável esse Antes da Meia-Noite, meio que um choque de realidade depois dos doces dois primeiros filmes, cheios de observações legais sobre gente e sobre a vida de jovens e adultos em geral, mas mantendo a parte ruim do pacote de longe, meio camuflada na nossa esperança de que aquele romance enfim desse certo. Nove anos depois, a impressão de que vemos, enfim, a complicação do ever after, como se flagrássemos a Cinderela e o Príncipe Encantado 10 anos depois do casamento, com o amor claramente presente e vivo ainda, mas acompanhado de todos os obstáculos que uma vida em comum pode trazer. É esse o objeto do filme, isso que sobra quando a paixão vai embora, o amor-amor, que retira as barreiras românticas para que insatisfações venham à tona e se interponham entre o casal, por mais banais que sejam essas insatisfações. Não sei se eu queria ver Jesse e Celine em discussões tão comezinhas, mas agradeço a Richard Linklater por não nos ter poupado. Seu filme é forte.

quinta-feira, setembro 19, 2013

Breaking Bad

Em 39 horas de voo mais uma madrugada perdida, consegui, em duas semanas, ver as três primeiras temporadas de Breaking Bad. Sim, é empolgante, viciante e eletrizante, uma série de tv muito boa. Só não a reinvenção da roda nem exemplo para a velha comparação desinformada de "como o cinema anda melhor que a tv". Claro, esse tipo de besteira é um problema dos comentaristas, e não da própria série, o que não significa que BB não tenha a sua cota de deslizes.

Pra começar, dentre os produtos televisivos recentes de destaque, me parece de longe o mais conservador em termos de estrutura, um verdadeiro folhetim, cheio de finais bombásticos, reviravoltas, situações-limite nem sempre muito prováveis e uma vontade apaixonada de te tirar o coração pela boca. A melhor definição pra isso é "rocambolesco".

O roteiro é rei, e absolutamente todos os detalhes presentes servem para levar a história para frente, ou pra trás, enfim, pra servir o plot, o que é feito com muita habilidade, até que algumas coincidências começam a incomodar. Um personagem que aparece furtivamente em um episódio não pode ser só um personagem qualquer - tem que voltar depois pra engatilhar outra trama, com mais cliffhangers, emoções de última hora, etc. Não há espaço para a banalidade. Tudo é tão eletrizante que às vezes cansa, no mau sentido.

De qualquer jeito, esses excessos de amarras fazem sentido dentro da filosofia kármica meio barata da série, que põe o caos em questão e que os resultados dos seus crimes podem cair de volta na sua cabeça, vindo dos céus.

O resultado, tão aclamado a ponto de bater um risível recorde no Guinness de série mais admirada (!), me parece oscilar entre o impressionante e o frouxo, como se estivéssemos diante de um pastiche muito bom de uma comédia de erros dos irmãos Coen. Pra quem crê em uma verdadeira inovação trazida pela série, Fargo manda lembranças, além de todo um cinema cínico de twists escrotos dos anos 90. Aliás, um dos episódios que eu vi era dirigido por John Dahl (O Poder da Sedução, lembra?) e dei uma boa risada.

Em comparação com o outro produto de tv universalmente exaltado do nosso tempo, Mad Men, me parece haver um abismo artístico, de ambição e inventividade. Se BB se apóia nos mais velhos truques narrativos da ficção, MM tem essa coisa de ser completamente difusa em relação a acontecimentos: a série é um acúmulo de momentos, relevantes e não relevantes no sentido de plot.

A maior parte desses momentos, aliás, não serve pra nada em termos de trama e a história não anda pra frente, e sim pros lados. Movimentos são percebidos sempre de maneira muito sutil ou então abrupta e aleatória, e não nesse fluxo de ocorrências que caracteriza Breaking Bad. Claro que Mad Men pode ser uma experiência inicialmente muito frustrante, já que não estamos acostumados com essa estrutura literária em televisão, sem falar na direção clínica, distante e desapaixonada, mas é por meio desse caminho torto que ela chega a impactos estéticos diferenciados e inéditos.

Breaking Bad, a despeito da sua excelência artesanal, sempre me deixa essa sensação de que "esse truque eu conheço", por mais tortuosos que sejam os seus golpes de roteiro. Nada contra: às vezes tudo que a gente precisa é de consumir produtos familiares bem executados. Gênero, enfim. Eu, por mim, mal posso esperar pra ver a chapa esquentar mais ainda nas temporadas seguintes.

domingo, julho 28, 2013

Odete

Essa noite vi um dos filmes mais românticos desde Truffaut, o português Odete, de João Pedro Rodrigues. É sobretudo um filme romântico no sentido literário da coisa, ancorado não no romance em si, mas na perda da pessoa amada e suas consequências, seja a separação causada por morte ou por abandono.

O deslocamento desse romantismo para uma sensibilidade ultragay não parece fazer qualquer diferença. por que tá tudo lá: a vontade de morrer causada pela ausência irreversível de quem se ama, o efeito emocional que lembranças em comuns de filmes e canções, e principalmente o impacto que uma dor de amor pode ter em terceiros, pessoas que podem ser tão afetadas ao presenciar um momento de paixão que tomam para si aquele sentimento, apossam-se dele e passam a fazer parte daquela história.

A obsessão do filme por túmulos, velas e cruzes, e o inevitável crescendo de loucura (feminina, especialmente) que acompanha toda essa hecatombe do coração me levaram direto para O Quarto Verde e As Duas Inglesas e o Amor, mas talvez não seja justo tirar de Portugal a referência geográfica desse épico do coração partido.

A melancolia permanente (a espera por São Sebastião?) e a eloquência detalhada a respeito do luto romântico são coisas que, se não identifico nos portugueses especificamente, encontro em grande parte dos marcos de expressão artística lusitanos, do fado a Castelo Branco, de Pessoa a Manoel de Oliveira (parece que JP Rodrigues o detesta, mas esse filme aqui é irmão de sangue da obra-prima O Estranho Caso de Angélica). Enfim, é um filme arrasador.  

sábado, julho 27, 2013

Amor Pleno

Tenho a impressão de quem não conseguiu engolir A Árvore da Vida pode se reconectar com Terrence Malick em Amor Pleno, agora que ele não tenta mais abraçar o universo e todas as coisas e reduz as suas preocupações a uma escala íntima, pessoal, mínima - muito embora os assuntos de tais preocupações sejam sempre os mesmos.

Pra quem reclamou da mão pesada (nunca foi um problema pra mim), da música, dos dinossauros, esse novo filme se apresenta maravilhosamente leve, diáfano, evanescente. Parece que se ele sustentar um plano sem cortar por alguns segundos a mais, aquelas pessoas vão evaporar.

Pode ser um belo contraponto, desde que essa falta de solidez do filme em termos narrativos não seja um incômodo. Nada se desenha de verdade: em vez de cenas, sensações, belas imagens e um off torto, entre o bêbado e o encantado. Sua câmera imprevisível continua igual: é impossível antecipar qualquer ângulo, corte ou o início ou fim de cada momento.

Se A Árvore da Vida fazia de suas imperfeições (o tom lá em cima, o tempo todo) uma necessidade face a ambição do filme como um todo, esse understatement de Amor Pleno chega a ser perigoso. Na maior parte do filme, essas sensações conseguem guiar-nos virtuosa e graciosamente, mas não raro ficam no ar alguns bolsões de frouxidão, de clichê de videoarte, como se até o próprio Terrence Malick, quem diria, tivesse cedido à tentação de fazer um exercício de estilo.

Parece que diante desse ideia de cinema próximo a fluxo de consciência e sensação múltiplo e polifônico, a tal da "mão pesada" e a grandiloquência clara de A Árvore da Vida fazem falta. De qualquer jeito, há tanta graça a ser capturada por olhos atentos, que mesmo em acabamento talvez bruto, Amor Pleno consegue conjurar quase o tempo todo essa beleza anormal da busca pela transcendência que é a assinatura de Malick. A decantar.

sexta-feira, junho 28, 2013

Os Amantes Passageiros

A gente ficou mal acostumado com Almodóvar acertando sem parar desde Carne Trêmula, mas a existência desse atroz Os Amantes Passageiros - estreia hoje no Brasil - nos faz lembrar que antes de virar grife de sensibilidade e qualidade narrativa, Almodóvar claudicava entre comédias bem próximas do Zorra Total, nas quais a graça essa buscada no escracho pelo escracho. Era absurdo, dava gags boas, mas isso não sustentava filmes. Ele mesmo reconheceu isso, refazendo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos dentro de Abraços Partidos.

Há claras exceções, como o maravilhoso Ata-me, mas pra mim Almodóvar só se encontrou em registros mais sombrios, nos quais o humor era um traço de personalidade colateral, e não o centro das suas preocupações. O grande Almodóvar, o que vai ficar para a história, é do melodrama, de obras-primas como Fale Com Ela, e de melodramas com sangue, como Má Educação e A Pele Que Habito.

Mais que uma questão de gênero, é a de pensamento: os filmes dessa grande fase de Almodóvar tinham todos um conceito, uma ideia, uma reflexão, uma sensibilidade, enfim, eram filmes que giravam em torno de um centro bem definido, como a nossa relação com a arte, as nossas identidades e suas possibilidades, enfim, um monte de coisa pra sentir, pensar e mastigar bem. São filmes de longo alcance, pra resumir.

A sensação ruim que fica de Os Amantes Passageiros é de que Almodóvar não precisava pagar essa dívida com o passado, voltando à extravagância descerebrada, a uma tentativa do riso fácil (houve cobranças tolas de que ele precisava relaxar depois de ter virado um diretor sério, etc). Foi uma péssima decisão: há abismos constrangedores nesse filme, de um merchã pavoroso da Samsung até um número musical longuíssimo que parece querer provar à força o óbvio, que comissários de bordo viados são, de fato, viados. Será preciso paciência.

(Se você está em Salvador, faça um favor a você mesmo e veja Amor Profundo, de Terence Davies, em cartaz na Saladearte Ufba. É o filme do ano até agora).

quarta-feira, junho 26, 2013

O Dia Em Que Ele Chegar

Não consigo tirar da cabeça a beleza intoxicante de O Dia Em Que Ele Chegar, filme do sul-coreano Hong Sangsoo que, espero, ainda veja a luz dos cinemas no Brasil. Conheci Hong ainda confiando na promessa meio rápida de um novo Rohmer e fui encontrando, filme a filme, algo único e exclusivo, que, com todo o respeito, nada deva ao grande mestre francês. 

Trata-se de alguém que filma basicamente a mesma coisa, as mesmas pessoas e os mesmos sentimentos com imenso carinho, a ponto de ser difícil diferenciar mentalmente um filme do outro além dessa sensação de embriaguez e frugalidade que acompanha essa pessoas do ramo do cinema, que saem falando sobre o cinema e a vida em bares e restaurantes de Seul e arredores.

De uns filmes pra cá, Hong me pareceu especialmente interessado em chegar a uma essência desse seu cinema, tomando por dominada essa beleza que ele evoca e pensando basicamente na estrutura a chegar a ela, até um ponto mínimo, exato, a sua partícula de Deus. São filmes que repetem obsessivamente uma mesma coisa, de múltiplos pontos de vista sobre um só evento, sempre tendo claramente o cinema como instrumento: os roteiros de A Visitante Francesa, os filmes de Oki's Movie...

O Dia Em Que Ele Chegar é mais opaco - não há filmes dentro de filmes -, mas é o ponto mais acabado dessa sintonia fina. Tudo funciona metalinguisticamente e diretamente com independência, ou seja, funciona dentro de uma trajetória de um cineasta para quem nela está interessada, e também pra quem desatentamente estiver conhecendo o cara agora, podendo ficar extremamente tocado e comovido com a graça triste que ele consegue capturar nessas noites bêbadas, nessas conversas sobre tudo, nessa ideia de que toda a vida cabe num gole de soju.

Esse século teve grandes filmes, e alguns grandes filmes imperfeitos que amamos mesmo sim, mas esse aqui tá naquela numa liga acima, especial. É ruim usar essa palavra, mas eu chamaria mesmo de sublime, aquele momento em que uma obra de arte simplesmente extrapola os limites do encantamento. São 78 minutos para jamais esquecer.

segunda-feira, maio 20, 2013

O Grande Gatsby

É bem fácil detestar toda a primeira hora de O Grande Gatsby, um amontoado irritante de sobras desinteressantes de Moulin Rouge, de festas nababescas, excesso de efeitos e uma sensação irreal de estar assistindo a Star Wars: Fitzgerald, com todo mundo flutuando em fundos verdes. Parece uma hora inteira perdida, especialmente porque em MR esse ritmo febril era o próprio filme, e aqui é só um elemento de narrativa, coisa de personagem, algo bem menos interessante.

Há uma virada essencial, que me ganha de volta. Gatsby acaba com as festas, fecha a casa, e Luhrmann é obrigado a, dentro dos seus limites de histeria, encarar um andar mais lento. Há o espalhafato habitual e localizado em cenas certeiras, mas não mais esse torpor "The Show Must Go On" que transformava todas as sequências em baratos de absinto. Seu tratamento ainda é over, claro, mas o plot baixa um pouco a sua bola para algo mais próximo dos excessos de um diretor de melodrama dos anos 50.

Óbvio que, como um cineasta mais interessado em direção de arte que dramaturgia, a maioria das nuances e sutilezas do livro é achatada e reprocessada, cuspida, na forma de romance, gênero de locadora. Isso não é necessariamente ruim: livre de profundidades, esse romance de locadora corre solto em planos exagerados, música alta e um monte de artifícios que vendem emoção artificial para uma história que não teria essa tendência catártica naturalmente. Para quem quiser tudo o que Fitzgerald tem a oferecer, o livro continua lá intacto. Isso aqui é outra coisa.

Apesar de ser mesmo o pior filme de Luhrmann, eu gosto muito, no fim das contas. Pelo que tenho lido, vejo certas restrições ao filme como reflexo da dificuldade de se respeitar o melodrama como gênero de forma não irônica/referencial ou sem a distância do tempo. Luhrmann não é Todd Haynes. A sua afetação aqui não tem uma significação terceira; é o que é na aparência mesmo, um modo de contar histórias com opção consciente pela simplificação de complexidades, infantilização de conflitos e ênfase em reações básicas e intensas de emoção. Não é defeito, é escolha.

PS (21/5): Escrevi que o trato de Baz Luhrmann em O Grande Gatsby não é referencial, e mantenho isso, mas dois dias depois ficaram as imagens de mulheres loucas em carros velozes, de pocilgas de beira de estrada, de mansões e escadas circulares, com um cadáver lá embaixo dessa escada, visto de cima para baixo. Luhrmann, quando quer citar, não é a pessoa mais sutil, mas é por isso que esses elementos todos não são uma citação: ele simplesmente estava bêbado de Palavras ao Vento, de Sirk.

Outro detalhe que não mencionei é que, no geral, festas loucas e desenfreadas transmitem uma sensação premonitória ou já presente de decadência: de Fassbinder a Bob Fosse, do mesmo Luhrmann a Pasolini, a orgia é um prenúncio do fim. Não nesse Gatsby. As pessoas divertem-se como sim, como se houvesse amanhã e elas fossem continuar ricas para sempre.

No início esse oba-oba me irritou muito, mas agora eu acho que esse contraste acentua o inesperado trágico que a história vai trazer não apenas a Gatsby, mas a todos aqueles ricos prestes a virar pó com o crash de 29. Eles eram inocentes, coitados; não havia pistas.

sábado, maio 18, 2013

Gloria


Há alguns anos eu vi vários filmes de Cassavetes. Ia ver a filmografia toda, mas decidi parar. Tinha achado meu diretor favorito de todo o sempre, então achei justo ter algumas coisas inéditas na manga para me dar de presente ao longo de toda a minha vida. Hoje eu não resisti e diminui meu estoque, vendo Gloria. É obviamente uma coisa linda, um instantâneo de uma cidade e de uma mulher que anda pra lá e pra cá nessa cidade, produto dela. Ela circula com os dentes cerrados e pistola na mão, moleque a tiracolo, sem muito roteiro para lhe guiar. É um cinema sobre as pessoas, mas não sobre as suas histórias; é um perfil de comportamento, e não de trajetória. É o ideal de realismo em cinema, já que a gente normalmente não segue histórias, mas apenas vive, no improviso.

domingo, maio 12, 2013

KIller Joe


Eu entendo que se admire William Friedkin por fazer mais um filme de momentos fortes, mas, me processem, essa soma de momentos fortes de Killer Joe, embora empolgante, tem como resultado uma tempestade de cinismo juvenil que eu esperaria de um David Fincher anos 90, e não de um William Friedkin. Eu já não ia muito com a cara de Bug (embora constate, obviamente: sim, tem muitos momentos fortes) e essa segunda incursão na adaptação teatral de Tracy Letts me parece confirmar a sensação de que Friedkin não tem mais nada a dizer realmente e pôs a sua capacidade de encenar momentos fortes a serviço de uma dramaturgia de efeito, cínica e adequadamente chocante - justamente para ser incensada como é. Killer Joe é um filme, e principalmente, um texto bem vagabundo. Bug era mais interessante, mesmo implorando por Cronenberg na direção.

sábado, maio 04, 2013

Mildred Pierce / Top of the Lake

Bem recentemente vi duas incursões de cineastas consagrados no formato minissérie de televisão, com resultados intrigantemente opostos, espelhados. Todd Haynes, em Mildred Pierce, usa um dos clássicos do dramalhão, a história da mãe coragem e da filha esnobe que dela tem vergonha, mas seu tratamento é impecavelmente discreto e cerebral, infinitamente delicado, coisa de ourivesaria, quase o produto de um Visconti tardio, gelado.

Em Top of the Lake, apesar de trilhar o caminho da história de investigação policial, Jane Campion parece estar o tempo todo próximo de um thriller de arte, com uma trabalho primoroso de clima e ambientação e, principalmente, uma obsessão pela permanência da violência, sobretudo da violência contra a mulher. Para Campion a Nova Zelândia é quase um faroeste onde as mulheres se defendem das dores do mundo apelando à irmandade.

Pena que para um projeto de ambições aparentemente bem mais complexas que o melô de Haynes, Top of The Lake imploda tenebrosamente no episódio final justamente por sua concessão a armadilhas da carochinha envolvendo questões de paternidade, e, pior, a completa incapacidade de lidar com as consequências dessa virada, a ponto de ter de recuar diante desse incômodo numa cena barata de novela das sete, como se se tratasse de, lembram?, O Mapa da Mina.

No final, em comparação, o dramalhão de Haynes é muito mais incômodo, difícil, desgastante, muito provavelmente porque Haynes é alguém que entende que é preciso dominar muito mais a forma e que essa qualidade de tratamento, no seu caso, é que leva bem mais longe as possibilidades contidas numa historinha banal como a de Mildred Pierce. Campion, por sua vez, parece ter muito mais ideias do que saber o que fazer com elas, e essa inabilidade de escrever um roteiro torna o seu projeto autoral algo realmente vulgar no fim das contas.

Fernando Meirelles disse dia desses que a televisão é o melhor lugar hoje para inovação, mas acho que essas duas experiências me mostram o contrário. TV é o abrigo da caretice de alta qualidade; o tempo a mais não acentua a possibilidade de experimentação, e sim o refinamento do storytelling e da sua excelência formal e clássica. Enfim, é para quem entende de gênero, escrita e execução, e não para quem privilegia o audiovisual como expressão de sensibilidade crua, com o perdão da dureza dessa oposição.

quinta-feira, abril 04, 2013

Retrato de um Homem


Dois personagens de Os Embaixadores, americanos em visita ao Louvre, em Paris, param na frente desta pintura de Ticiano, O Homem com a Luva ou Retrato de um Homem, que tem como objeto um jovem herdeiro veneziano. Ainda estou bem longe de terminar o livro - um calhamaço -, mas essa passagem já me valeu por um insight a respeito de toda a obra de James, que a partir de agora passo a entender para sempre com esse filtro da pintura. James, como Ticiano, já havia feito um Retrato de Uma Mulher, também sobre uma herdeira, e sua técnica em todos os livros agora me parece ser a de um pintor.

Impressiona como o seu sentido de composição narrativa se constitui de poucas ações, mas todas elas descritas ao extremo, em todos os detalhes extra e intrapersonagem, mas jamais no nível dramático (dramatúrgico?) de cenas e movimentos. Parece-me agora que ela passa de momento em momento, isola-os, e começa a pintar, como se o todo dos seus livros fosse não uma pintura ṹnica, mas uma série de tableaux de inação, congelados.

Talvez por isso suas elipses sejam tão impactantes: vemos um personagem de um jeito, e na pintura seguinte, ele já sabe de muito mais coisas e passou por uma série de acontecimentos importantes aos quais não tivemos acesso. Uma série de poucas pinturas não é uma história em quadrinhos, ou, no limite, o cinema: o fluxo de narrativa é interrompido e retomado, interrompido e retomado.

Mais: a própria decisão do escritor de quais momentos "pintar" ou não ajuda a tornar as suas histórias ostensivamente nebulosas. Antes, essa luta que entramos nos seus livros para apreender as informações (ler James é trabalhoso) me parecia apenas uma maravilhosa idiossincrasia de estilo, incrível mas não necessariamente justificada.

Lendo seus livros como uma série de pinturas, percebemos que James quer o mesmo comportamento de um visitante de museu diante da pintura. Não adianta parar, olhar, tirar uma foto e passar adiante. É preciso ver tudo obsessivamente, como se cada tom de cor pudesse nos revelar um acontecimento, cada sombra incluísse uma palavra decisiva que ajudasse a fazer as pontes entre o momento A e o momento B, mas sem nenhuma garantia de encontrar essas respostas. James faz uma literatura da insegurança.

Falando há alguns dias com um amigo e correspondente literário, chamei a atenção de como um parágrafo no início do livro fosse talvez a mais perfeita tradução de um método jamesiano, mas não sabia exatamente o porquê. Agora percebo: o parágrafo é um retrato, límpido e vívido de um homem, como o herdeiro de Ticiano. Claro, trata-se de pouco mais de uma página, o que, se levarmos adiante essa analogia, faria do trecho abaixo um descrição exaustiva de um pequeno detalhe de um painel muito maior, o de um capítulo. Transcrevo abaixo, na tradução de Marcelo Pen:

Com efeito, ele parecia no momento reiterar a conclusão ao permanecer aboletado ali com a luz do gás a refletir nos olhos. A atitude em si de algum modo expressou a futilidade de retificações específicas na forma de um fracasso de ordem geral. Sua ampla e bela cabeça e seu rosto largo, descolorido e vincado configuravam um conjunto fisionômico formidavelmente significativo, cujo meridiano superior, o impressionante sobrolho senhorial, os cabelos fartos e soltos, os olhos de um escuro fuliginoso, lembrava – até mesmo a uma geração cujo padrão sofrera uma completa mudança – a portentosa imagem, comum em gravuras e bustos, dos vultos nacionais de meados do século. Representava o tipo particular – elemento esse dotado de poder e promessas que Strether, no princípio, associara a ele – de homem de Estado americano, o legislador treinado nos “salões do Congresso” de outrora. Em anos posteriores correra a história de que, como a parte inferior de seu semblante, fraca e ligeiramente irregular, empanava a semelhança, essa fora a razão verdadeira de ele deixar crescer a barba; quiçá capaz de estragar o conjunto para quem não tivesse a par do segredo. Ele meneava a cabeleira; fixava, com seus olhos admiráveis, o auditor ou observador; não usava óculos e tinha um modo, em parte formidável, mas também em parte encorajador (como de um congressista a seu constituinte), de não despregar o olho de quem dele se aproximasse. Waymarsh saudava essa pessoa como se ela houvesse batido na porta e ele lhe tivesse concedido permissão para entrar. Strether, que fazia tempo não o via, apreendia-o de uma perspectiva nova, e talvez jamais lhe tivesse feito perfeita justiça até aquele momento. Sua cabeça parecia maior e seus olhos mais argutos do que teriam sido necessários para o bom êxito da incumbência; mas isso queria dizer, afinal, que a incumbência em si era expressiva. O que ela expressava à meia-noite, no aposento iluminado a gás, em Chester, era que o sujeito a que ela se dedicava no fim mal se safara, com o correr dos anos, de um colapso nervoso generalizado. Mas essa própria indicação de uma vida intensa, como se entendia a vida intensa em Milrose, teria sido, para a imaginação de Strether, um elemento de que Waymarsh poderia ter escapado com facilidade houvesse ele tão somente se permitido escapar. Infelizmente nada se assemelhava menos a uma escapada do que o rigor com que ele, na beirada da cama, abraçava sua postura de prolongada impermanência. Sugeria a seu companheiro uma posição que sempre o preocupara quando sustentada – a de uma pessoa em um trem com o corpo inclinado para frente. Representava o ângulo em que o pobre Waymarsh teria de sentar-se durante sua provação na Europa.

sexta-feira, março 22, 2013

Tremé

Depois de sorver a conta-gotas, numa média de um episódio a cada quinze dias, finalmente terminei a primeira temporada de Treme. É algo realmente especial, incrivelmente generoso, cheio de amor pelo grupo de pessoas e pela cidade que filma, sem nenhum ranço de fofismo ou de instagramismo, que é aquela falsa melancolia que só posa de tristeza de verdade, mas não fere nem machuca.

Treme é de outra liga, livre, solta, sem obrigações estruturais de televisão, de fazer coisas acontecerem, de personagens gritarem, de criar emoções artificiais para obrigar o público ao ver o próximo episódio. O que ele quer é o ritmo da vida, individual e coletivamente, filtrado pela música de uma cidade.

No fundo, me vem forte a memória de Nashville, especialmente aquele final com Barbara Harris puxando It Don't Worry Me e empurrando a vida para frente enquanto alguém acaba de morrer ao seu lado. A banda tocando no funeral na última cena do finale é a mesma coisa, um the show must go on insinuado em toda as inserções musicais da temporada, mesmo as mais festivas.

Eram todas, sempre, músicas de luto, as canções do enterro de uma velha New Orleans, mas com a promessa de vida dessa nova cidade, marcada pela tragédia, e sim, sem pieguice, pela superação. Enfim, é uma série linda, que lembra grandes momentos da narrativa sulista pra muito além da televisão. David Simon parece mirar em algo entre Faulkner e Carson McCullers, o que indica que as suas ambições são bem incomuns.

Não é o caso de fazer uma série "melhor que cinema" (severas aspas), como Mad Men, que ganharia facilmente uma Palma de Ouro das séries, se houvesse uma (só há Oscar das séries, o Emmy, mas nada com tanto prestígio artístico). Simon quer outra coisa: mais que alcançar qualquer êxito formal e estético, The Wire e Treme mostram que ele quer ser o narrador definitivo dos Estados Unidos desse novo milênio. Podia bem ganhar um Nobel de literatura, como dramaturgos ganharam sem deixar de fazer especificamente teatro. Por que não?

domingo, fevereiro 24, 2013

Moonrise Kingdom

A verdade é que estou cansado de ironia. Não por intolerância e sim por excesso de tentativas em tudo o que quer ser arte. Se Wes Anderson filma com uma obsessão de cores apenas para ser triste, por que não ser apenas triste e pronto? Por que construir camadas de sentido apenas para parecer despistar que vê. A ironia de dizer uma coisa para significar outra nem sempre é enriquecimento. Às vezes é só entulho.

Por isso que eu só consigo gostar de Moonrise Kingdom por cima, na sua sessão da tarde de nouvelle vague mirim (copyright Pamplona) moderadamente divertida, sem ficar buscando implicações terceiras. Não acredito nessa tristeza de brechó; nunca acreditei nessa melancolia de boutique.

Se esse filme me diz alguma coisa, talvez seja que Anderson talvez devesse filmar o que pensa, sem subterfúgios, ou, inversamente, talvez tomar uns antidepressivos (antimelancólicos?) para adequar o seu temperamento à graça pura que seu cinema é capaz de ter.

sábado, fevereiro 16, 2013

Lincoln

Por que as pessoas, quando partem para elogiar um filme de Spielberg, destacam a sua insuspeita sobriedade, a sua não-concessão ao melodrama? O melodrama é uma nobre arte, senhores, e alguns dos melhores momentos da carreira de Spielberg (A Cor Púrpura, Inteligência Artificial) passam justamente pela capacidade de levar esse gênero ao limite da emoção, de forma verdadeira e impactante.

O real problema spielberguiano é a infantilização de certos temas, e não a música alta. Ele ter segurado a mão em Lincoln não é exatamente um mérito. A qualidade do filme é bem outra, e bem spielberguiana, aliás: tirar entretenimento de pedra, como desse filme verboso, falado e provavelmente árido na mão de qualquer outra pessoa. É de embasbacar como o filme é leve, fluido, ágil. Se era realmente nojento e terrível transformar o holocausto num parque de diversões, como em A Lista de Schindler, aqui, em Lincoln, seu tratamento instigante e divertido não ofende. Não há nada de mau em flagrar um momento de real heroísmo na História com as devidas cores de emoção que esse heroísmo comporta.

Li por aí também um certo incômodo com a santificação de Lincoln no filme, e eu discordo disso completamente. Spielberg realmente não me parece filmar ele como lenda, como ícone; seu tratamento do personagem é bem terreno, mundano, pé no chão. O extrafilme da vida de Lincoln, o lado obscuro da sua vida, etc, não são uma questão. Spielberg registra um aspecto de Lincoln e dentro dessa história particular do Lincoln que ele mostra, o personagem parece muito bem balanceado, real, humano, e não um deus.

Daniel Day-Lewis é um ás nessa composição, enchendo o personagem por dentro de humor, classe, convicções, de um temperamento completo, e não apenas vestindo a carcaça, como Meryl Streep fez ano passado com sua Margaret Thatcher. O melhor ator em cena, no entanto, e pra variar, é Tommy Lee Jones.

PS: Esse filme dá uma boa sessão dupla com No, de Pablo Larraín, indicado ao Oscar de filme estrangeiro. Ambos os filmes falam de concessões para a conquista de objetivos bem maiores, ou seja, a base do relacionamento político.

sexta-feira, fevereiro 08, 2013

Os Miseráveis


Não entendo a reclamação pelos close-ups extremos usados por Tom Hooper nos números musicais de Os Miseráveis. Acho que são completamente justificados, e não apenas eficazes no todo, mas muito fortes nos grandes números do espetáculo. Os Miseráveis é daqueles musicais gigantescos na voz mas contido nos movimentos, sem cenas de dança, todo composto a partir de baladas, então as canções só ganham força se os atores mostrarem expressividade, e chegar a câmera bem perto foi uma ótima ideia.

Além disso, os closes realmente não me parecem excessivos. Hooper tem essa mania de fazer planos contraintuitivos (aka tortos), mas eles funcionam aqui, especialmente porque às vezes ele alterna entre três ou mais ângulos de close. Há uma dinâmica bem jogada com os altos e baixos da música, um andamento bem pareado entre câmera e canção. Quando ele abre a imagem, também funciona, especialmente nos movimentos, na correria. Ele traz o musical pro nível do chão, da testemunha, mesmo quando a gente olha e diz “que plano feio”. É feio, mas é funcional.

Claro que a opção pelo elenco cantar ao vivo e essa emoção num nível sempre alto (um problema da música, sobretudo) banalizam os grandes momentos, e às vezes esvaziam o sentimento por falta de contraste, tornam este sentimento apenas uma referência apenas musical, e não dramatúrgica. No entanto, para cada número ruim de Russell Crowe (muito mal escalado), o filme tem na manga momentos arrebatadores de melodrama pra te trazer de volta. Afinal, que raio de filme tem três showstoppers tão incríveis como I Dreamed a Dream, On My Own e Empty Chairs and Empty Tables?

Esses momentos não seriam tâo fortes, claro, não fosse o elenco. Anne Hathaway vai ganhar merecidamente o seu Oscar, mas pena que Samantha Barks e Eddie Redmayne (que surpresa, excelente cantor) tenham sido eclipsados. Eles desfibrilam o coração do filme toda vez que ele ameaça parar, afogado em tanto chororô. De repente tudo soa autêntico novamente, forte, emocional de verdade e não por tabela. É um bom filme, e nessa escala Oscar é bem melhor que embustes autorais como Amour, produtos vulgares de prestígio como Argo ou, horror dos horrores, comédias nulas como O Lado Bom da Vida. Aliás, eu diria mesmo que a primeira meia hora é espetacular.  

terça-feira, fevereiro 05, 2013

The Master


Três filmes depois já dá pra perceber, mas quando Paul Thomas Anderson fez chover sapos, ele estava esgotando uma vertente de criatividade e partindo com todas as forças na direção contrária. Nos seus primeiros filmes ele explorava o que havia em comum entre um grupo imenso de personagens, desenhando com todas as forças de texto e imagem uma lógica para unir essas pessoas: a fraternidade, em Boogie Nights; Deus, na falta de palavra melhor, em Magnólia.

Seus três filmes seguintes são retratos de indivíduos sem qualquer chão, apoio ou muleta de sustentação, perdidos no mundo. Em Embriagado de Amor há ainda uma redenção via amor romântico, mas depois disso, nada. The Master, agora, parece ser o cume de um caos absoluto, trazendo essa falta de chão pro nível do próprio cinema, e não apenas na trajetória dos seus personagens. Faz tempo que não via um filme americano tão desconjuntado, desarticulado, desprovido de causas e efeitos, sem centro, sem estrutura.

O que temos, em resumo, é uma vida pontuada em alguns trechos, como se PTA abandonasse o personagem toda vez que consegue iluminar algum aspecto de sua personalidade, mesmo que as situações nas quais ele esteja envolvido não se tenham resolvido. Não é um filme escravo do roteiro, ou mesmo das pessoas, mas do que interessa ao diretor observar nestas pessoas, o que ele faz sem muito rigor, livre para abortar suas tentativas quando elas não vão muito adiante.

Qualquer tentativa de desenhar um plot a partir desse filme é inútil. Os fragmentos não se colam, não há um quebra-cabeça a montar, um twist lancinante no fim para nos fazer reconsiderar tudo. A cada elipse, a cada anticlímax, o diretor acentua a mudança de seus próprios interesses como cineasta, de alguém que parecia querer o controle de tudo via texto para um autor muito mais entusiasmado com a experimentação e com as possibilidades de aproximar essa experimentação do seu atual ponto de vista sobre a vida, instável, insegura.

sexta-feira, fevereiro 01, 2013

De amor e tortura


Cada dia acho mais indecente essa indicação de Michael Haneke ao Oscar de direção, sobretudo pela esnobada feia em Kathryn Bigelow. Os filmes funcionam de moda diametralmente oposta.

Amour realmente impressiona pela força de projetar mal-estar, pela capacidade de tirar muito cinema de um dueto de grandes atores em um apartamento, mas depois que baixa a poeira só sobra uma violência gratuita contra as pessoas, uma histeria no meio daquele rigor todo, uma inflada legal nos sofrimentos (o pesadelo, o tapa, a agonia da Riva quase que saboreada), enfim, um sentimento geral de desonestidade humana.

Curiosamente, me parece o primeiro filme dele completamente despolitizado, e se seus filmes de tese vez por outra vergavam sob o peso da sua lição de moral (o mundo é uma merda), às vezes ele alcançava grandes insights no nível do detalhe das relações humanas inscritas nesse panorama pessimista (tô falando de Caché, Tempos de Lobo, 71 Fragmentos).

(Em A Professora de Piano, também aparentemente menos político, há uma complexidade daquele relacionamento entre os personagens de Huppert e Magimel que, apesar de todo o horror presente no filme todo como um todo, chegava, ali sim, perto de um amor à Truffaut, doente e obsessivo, mas ainda assim amor.)

A gente reclamava de suas teses, mas sem essa coluna política, o que resta de Amour é uma espiral de horror perfeitamente calibrada para a náusea: os artifícios se evidenciam, chamam a atenção para si, isolados naquele apartamento laboratório, em que ratinhos recebem doses de veneno cada vez mais fortes.

Que ele faz isso com muita habilidade, ok, mas talvez as minhas expectativas de cinema sejam maiores do que exercícios de estilo miserabilistas. (Dica: esse filme pode ser outra coisa em cinema, mas sua mentalidade não passa muito longe de, por exemplo, Biutiful, de Alejandro Gonzalez Iñarritu. Haneke desceu bem baixo).

A Hora Mais Escura, ao contrário, parte de um desconcerto violento pra decantar de maneira extraordinária como o grande filme que é. Bigelow filma a caçada a Osama Bin Laden quase que como uma repórter, numa recusa impressionante de julgamentos mesmo enquanto filma todo o aparato dos US of A cruzando com convicção a linha do humanamente aceitável em nome de um acerto de contas pelo 11 de Setembro.

As cenas de tortura são mesmo terríveis, e, instintivamente, ficamos esperando que Bigelow nos pegue pela mão e condene o que ela registra. Ela se recusa, a ponto de que se possa especular se ela está a favor daquilo. Mais tarde, na reta final da caçada a Osama, Jessica Chastain (grande, grande atuação) afirma numa cena reveladora que, por ela, a invasão à casa do líder da Al Qaeda não se realizaria: preferia jogar uma bomba. Toda a meia hora final é a crônica de um assassinato sem processo, mas não há uma linha de diálogo levantando qualquer questão.

Seria uma omissão, ou mesmo uma conivência de Bigelow com tudo o que ela documenta? Eu acho que não. Acho que, se estou pensando no filme até agora, é porque ela usa o silêncio não para se esquivar de questões, mas para problematizá-las de maneira ainda mais profunda. A reflexão não vem embalada para presente, e é isso que dá a A Hora Mais Escura o seu longo alcance. Em Amor, dá pra parar de pensar já na cena inicial.