quinta-feira, abril 04, 2013

Retrato de um Homem


Dois personagens de Os Embaixadores, americanos em visita ao Louvre, em Paris, param na frente desta pintura de Ticiano, O Homem com a Luva ou Retrato de um Homem, que tem como objeto um jovem herdeiro veneziano. Ainda estou bem longe de terminar o livro - um calhamaço -, mas essa passagem já me valeu por um insight a respeito de toda a obra de James, que a partir de agora passo a entender para sempre com esse filtro da pintura. James, como Ticiano, já havia feito um Retrato de Uma Mulher, também sobre uma herdeira, e sua técnica em todos os livros agora me parece ser a de um pintor.

Impressiona como o seu sentido de composição narrativa se constitui de poucas ações, mas todas elas descritas ao extremo, em todos os detalhes extra e intrapersonagem, mas jamais no nível dramático (dramatúrgico?) de cenas e movimentos. Parece-me agora que ela passa de momento em momento, isola-os, e começa a pintar, como se o todo dos seus livros fosse não uma pintura ṹnica, mas uma série de tableaux de inação, congelados.

Talvez por isso suas elipses sejam tão impactantes: vemos um personagem de um jeito, e na pintura seguinte, ele já sabe de muito mais coisas e passou por uma série de acontecimentos importantes aos quais não tivemos acesso. Uma série de poucas pinturas não é uma história em quadrinhos, ou, no limite, o cinema: o fluxo de narrativa é interrompido e retomado, interrompido e retomado.

Mais: a própria decisão do escritor de quais momentos "pintar" ou não ajuda a tornar as suas histórias ostensivamente nebulosas. Antes, essa luta que entramos nos seus livros para apreender as informações (ler James é trabalhoso) me parecia apenas uma maravilhosa idiossincrasia de estilo, incrível mas não necessariamente justificada.

Lendo seus livros como uma série de pinturas, percebemos que James quer o mesmo comportamento de um visitante de museu diante da pintura. Não adianta parar, olhar, tirar uma foto e passar adiante. É preciso ver tudo obsessivamente, como se cada tom de cor pudesse nos revelar um acontecimento, cada sombra incluísse uma palavra decisiva que ajudasse a fazer as pontes entre o momento A e o momento B, mas sem nenhuma garantia de encontrar essas respostas. James faz uma literatura da insegurança.

Falando há alguns dias com um amigo e correspondente literário, chamei a atenção de como um parágrafo no início do livro fosse talvez a mais perfeita tradução de um método jamesiano, mas não sabia exatamente o porquê. Agora percebo: o parágrafo é um retrato, límpido e vívido de um homem, como o herdeiro de Ticiano. Claro, trata-se de pouco mais de uma página, o que, se levarmos adiante essa analogia, faria do trecho abaixo um descrição exaustiva de um pequeno detalhe de um painel muito maior, o de um capítulo. Transcrevo abaixo, na tradução de Marcelo Pen:

Com efeito, ele parecia no momento reiterar a conclusão ao permanecer aboletado ali com a luz do gás a refletir nos olhos. A atitude em si de algum modo expressou a futilidade de retificações específicas na forma de um fracasso de ordem geral. Sua ampla e bela cabeça e seu rosto largo, descolorido e vincado configuravam um conjunto fisionômico formidavelmente significativo, cujo meridiano superior, o impressionante sobrolho senhorial, os cabelos fartos e soltos, os olhos de um escuro fuliginoso, lembrava – até mesmo a uma geração cujo padrão sofrera uma completa mudança – a portentosa imagem, comum em gravuras e bustos, dos vultos nacionais de meados do século. Representava o tipo particular – elemento esse dotado de poder e promessas que Strether, no princípio, associara a ele – de homem de Estado americano, o legislador treinado nos “salões do Congresso” de outrora. Em anos posteriores correra a história de que, como a parte inferior de seu semblante, fraca e ligeiramente irregular, empanava a semelhança, essa fora a razão verdadeira de ele deixar crescer a barba; quiçá capaz de estragar o conjunto para quem não tivesse a par do segredo. Ele meneava a cabeleira; fixava, com seus olhos admiráveis, o auditor ou observador; não usava óculos e tinha um modo, em parte formidável, mas também em parte encorajador (como de um congressista a seu constituinte), de não despregar o olho de quem dele se aproximasse. Waymarsh saudava essa pessoa como se ela houvesse batido na porta e ele lhe tivesse concedido permissão para entrar. Strether, que fazia tempo não o via, apreendia-o de uma perspectiva nova, e talvez jamais lhe tivesse feito perfeita justiça até aquele momento. Sua cabeça parecia maior e seus olhos mais argutos do que teriam sido necessários para o bom êxito da incumbência; mas isso queria dizer, afinal, que a incumbência em si era expressiva. O que ela expressava à meia-noite, no aposento iluminado a gás, em Chester, era que o sujeito a que ela se dedicava no fim mal se safara, com o correr dos anos, de um colapso nervoso generalizado. Mas essa própria indicação de uma vida intensa, como se entendia a vida intensa em Milrose, teria sido, para a imaginação de Strether, um elemento de que Waymarsh poderia ter escapado com facilidade houvesse ele tão somente se permitido escapar. Infelizmente nada se assemelhava menos a uma escapada do que o rigor com que ele, na beirada da cama, abraçava sua postura de prolongada impermanência. Sugeria a seu companheiro uma posição que sempre o preocupara quando sustentada – a de uma pessoa em um trem com o corpo inclinado para frente. Representava o ângulo em que o pobre Waymarsh teria de sentar-se durante sua provação na Europa.