domingo, novembro 13, 2016

Hacksaw Ridge



É realmente impossível ver e pensar o filme novo de Mel Gibson, uma história real sobre um herói de guerra que se recusava a pegar em armas, e não pensar nesses Estados Unidos que elegeram Donald Trump.

Um filme tão agressivo na defesa das boas almas de coração simples da América profunda, num momento desse, não tem como ser visto de outra forma, especialmente quando o centro da questão toda, a tal objeção de consciência, e usada até hoje para que conservadores religiosos se recusem a atender homossexuais em alguns estados, por exemplo - inclusive no estado do vice de Trump, Mike Pence.

O filme não tem como não ser uma resposta à América democrata, quando na sua conclusão um dos personagens abertamente diz que não se deve rir de convicções, não importa quais sejam.

Apesar de ser baseado numa história real, e do mais puro heroísmo, não há como se separar um filme do seu tempo, e esse tempo é hoje. Nessa luz, o herói sulista não deixa de refletir aquele tipo de hipócrita que quer participar da guerra, mas sem sujar as mãos, tão circunspecto na sua moral. É um elogio do princípio, não importa a teleologia da coisa.

Esse texto não é um julgamento sobre aquele cara, mas sobre o cara do filme que existe pra defender essa visão de mundo de Mel Gibson. Hacksaw Ridge é uma propaganda do cristianismo como há muito não se vê, e apesar do seu herói ser adventista, a redenção vinda da catarse e da violência extrema é típica do catolicismo de Gibson.

Não deixa de ser curiosa a interpretação quase bovina de Andrew Garfield no papel principal, com aquela graça divina que se encontra no olhar das bestas, como bem nos ensinou Bresson, um católico que expressava a sua fé no cinema de modo oposto ao de Gibson, com extrema depuração e atenção ao essencial das coisas do mundo.

Dito isso tudo (e não apesar disso), assim como aquele grand guignol bíclico chamado A Paixão de Cristo, Hacksaw Ridge é um filme formidável.

quarta-feira, novembro 09, 2016

A Assassina



Resolvi pôr um pouco de beleza no meu dia para curar a ressaca e finalmente vi A Assassina, de Hou Hsiao-Hsien. Beleza tem, e muita, e do tipo especial e massacrante que só alguém com o nível de depuração na carreira que Hou alcançou pode nos proporcionar.

É o filme ideal para curar os olhos, um passeio de imagem incrível para imagem incrível, de um jeito que o projeto parece se tratar de uma exposição num museu, e não dum filme. Não digo isso pejorativamente. O caso é que Hou faz tempo que não é ou nunca foi um contador de histórias; ele é um contador de ambiências, de universos.

É por isso que o filme mantém o interesse apesar de ser aparentemente ancorado numa conturbada intriga palaciana da dinastia sei lá o quê do século 8 chinês, com um outro desvio para uma cena de ação aqui e ali.

Essa trama movimentada - do que tipo que irritaria o mestre de Hou, Ozu - está no filme no entanto quase que como um objeto de cena, uma desculpa, algo que de fato nem precisamos entender, ou a que o filme não dedica atenção especial.

Eu gosto do filme, aliás o filme é um prazer absoluto, mas ao fim de uma hora e quarenta minutos, fica uma sensação incômoda de desinteresse também pelas pessoas; é um filme quase despido de humanidade, já que "gente" só interessa como composição de tableaux.

Não é um filme estéril - o efeito plástico que conjura empolga por ser tão gritantemente uma criação humana, por ter um ponto de vista, uma assinatura. Por outro lado, os Hou que eu amo de verdade (os dos anos 80, especialmente Tempo de Viver e Tempo de Morrer, ou Poeira no Vento ou A Cidade das Desilusões) não davam essa sensação de estar a um passo de ser uma instalação artística.

O filme ganhou um prêmio muito bem dado de direção no festival de Cannes do ano passado, aliás. É basicamente isso, um diretor acima do que o filme é, de fato.

(Ressalva gigantesca de que o filme grita para ser visto no cinema, e eu vi numa tv. Grande, até, mas uma tv. Ficou bom tempo em cartaz em Salvador, pena que não bateu com as minhas datas)